Em pleno século XXI, atravessamos um momento crítico para o cinema em Portugal. Segundo dados de 2024 do European Audiovisual Observatory e do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), o consumo médio anual situa‑se nos 1,48 bilhetes por habitante, bem abaixo da média europeia de 2,7 e longe dos 5,0 registados em França ou dos 3,2 nos Estados Unidos. Isto significa que, por cada 100 portugueses, apenas 148 entraram numa sala de cinema ao longo de todo o ano — um contraste gritante com países do Leste Europeu, como a Polónia (2,85) ou a Hungria (2,92), que protagonizam uma recuperação pós‑pandemia mais vigorosa.
Em Lisboa, por exemplo, as salas do Cinemax, no Parque das Nações, reportam uma queda de 12% nas receitas de bilheteira em 2023 face a 2019. No Porto, o Cinema Trindade — ícone histórico aberto em 1932 — viu a sua lotação média pender para 45 espectadores por sessão, face aos 65 de há cinco anos. Já o Cine-Teatro Louletano, no Algarve, implementou o passe mensal “Cineclube Loulé” com o apoio da Câmara Municipal, mas apenas registou 120 aderentes no primeiro trimestre de 2025, muito longe dos 300 planeados.
As razões são multifacetadas. Em primeiro lugar, o preço do bilhete em grandes redes, como a NOS Cinemas, alcança em Lisboa os 8,50 €, valor elevado face aos 6,30 € em Madrid ou aos 7,00 € em Roma. O ICA tentou mitigar este fosso através do Programa Nacional de Apoio à Exhibição (PNAE), que concede subsídios a salas independentes — como a Cinemateca Portuguesa, cujo bilhete cultural fica a 3,50 € —, mas o impacto mantém-se reduzido quando comparado com o crescimento anual de 18% das subscrições de plataformas de streaming.
O fenómeno Netflix ilustra esta mudança de hábitos. Em 2024, estima‑se que 2,7 milhões de lares portugueses tenham uma subscrição ativa, segundo a AIMC (Association for Interactive Media and Commerce), deixando o tema “como é que vamos ao cinema?” em segundo plano. Além disso, iniciativas locais como o “Doc’s Kingdom Festival”, em Óbidos, ou o “Indielisboa”, em Lisboa, atraem públicos mais restritos e aficionados, mas não conseguem chegar ao grande público — 8.200 espectadores em média por edição, face aos 15.000 de há uma década.
A indústria nacional também sente o baque: a produção do filme “Variações” (ATCN, 2019), com mais de 662 mil espectadores, tornou‑se exceção à regra, enquanto estreias como “Sombras” (2019) ou “Mal Viver” (2023), coproduzidas pela Valentim de Carvalho Filmes, mal atingiram os 20 mil bilhetes vendidos. Estes números contrastam com a cofinanciamento europeu conseguido em 2024 pelo projeto “O Peso do Silêncio”, apoiado pelo programa MEDIA da União Europeia, que garantiu 500 mil euros mas cuja estreia em Portugal apenas juntou 5.400 pessoas em sala.
Programadores e agentes culturais — do Cineclube do Porto ao Fórum de Cinema de Portimão — defendem uma intervenção mais decidida: redução dos preços sociais, parcerias com escolas secundárias da rede pública, campanhas de promoção do “Dia do Cinema Nacional” (que decorre a 15 de outubro, data instituída pelo ICA) e incentivos fiscais às salas de arte e ensaio. Em 2023, apenas 14 salas portuguesas tinham estatuto de “Sala COOP”, beneficiando de isenções de IVA e descontos de 20% em direitos de exibição.
Num debate promovido pela Assembleia da República em maio de 2025, a diretora‑geral do ICA, Margarida Amaral, sublinhou a urgência de «reivindicar o cinema como espaço de encontro» e pediu ao Governo que inclua no Orçamento de Estado para 2026 uma verba adicional de 2 milhões de euros para requalificação de equipamentos culturais. O deputado Ricardo Serrão Santos, ex-secretário de Estado da Cultura, salientou a importância de «aproximar o cinema às comunidades periféricas», referindo projetos-piloto em Évora e em Setúbal, onde circuitos de cinema itinerante já funcionam com sucesso.
No entanto, enquanto o digital não deixa de proliferar — com plataformas nacionais como Filmin Portugal a crescer 35% em subscrições no último ano —, os operadores de salas debatem-se para reinventar a experiência cinematográfica: sessões temáticas no São Jorge, transmissões de óperas no Medeia Open Air em Setúbal e iniciativas como o “Ticket Solidário”, promovido pela Gulbenkian, que retira 1€ de cada bilhete vendido para apoiar cineclubes locais.
Perante este panorama, Portugal não pode olhar apenas para as estatísticas frias. A experiência comunitária de ver um filme no ecrã grande, com som envolvente e discussão pós-sessão, transcende o entretenimento: reforça laços sociais, fomenta o debate cultural e dá visibilidade a narrativas lusófonas. Se queremos recuperar o estatuto de quinze anos atrás, quando o cinema nacional atingia 1,1% de quota de mercado (foi recorde histórico em 2010), precisamos de união entre sector público e privado, políticas estruturantes e, acima de tudo, de uma vontade coletiva de voltar a acreditar na magia da sala escura.