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Barbearias de Garagem: O Fenómeno Invisível que Está a Redefinir a Cultura Masculina nas Periferias de Portugal

Com preços acessíveis e cortes personalizados, barbeiros informais estão a conquistar clientela fiel em garagens e anexos improvisados. As autoridades fecham os olhos, mas o fenômeno cresce nas sombras.

Rui Muniz Ferreira Rui Muniz Ferreira Jornalista de Economia e Educação | Porttugal
6 Minutos
2025-06-06 17:01:00
Barbearias de Garagem: O Fenómeno Invisível que Está a Redefinir a Cultura Masculina nas Periferias de Portugal

Barbearias sem vitrine, mas com clientela fiel

Num recanto pacato da Amadora, mesmo ali ao lado da linha de Sintra, um portão de alumínio range devagar. Dentro, não se ouvem sinos nem música ambiente de salão chique, mas sim um sonoro "é o próximo!" dito com sotaque crioulo e um sorriso de quem já sabe o que faz. O espaço, um anexo outrora usado para guardar ferramentas, foi transformado numa barbearia improvisada onde o talento se sobrepõe às formalidades. Há jovens sentados em baldes virados ao contrário, outros encostados às paredes descascadas, e no centro um barbeiro de mãos firmes a desenhar com precisão um degradé ao estilo "skin fade". Aqui, o corte é arte e o cliente é irmão.

Fenómenos como este multiplicam-se nos bairros periféricos do país, sobretudo em localidades como a Cova da Moura (Amadora), o Bairro do Cerco (Porto), o Bairro da Bela Vista (Setúbal) e a Quinta da Fonte (Loures). Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, mais de 12% dos jovens destas áreas vivem em situação de subemprego ou desemprego prolongado. Muitos encontram na máquina de cortar cabelo uma tábua de salvação — e mais do que isso, um palco de afirmação social.

É o caso de Djair Monteiro, de 28 anos, natural da Praia, em Cabo Verde. Em 2021, com o encerramento do restaurante onde trabalhava, viu-se sem alternativas e sem rendimentos. “Não podia ficar parado. Peguei na máquina que usava para cortar o cabelo aos meus irmãos e comecei na garagem dos meus pais, em Vale da Amoreira. Hoje tenho fila à porta todos os dias.” Por mês, Djair chega a fazer entre 800 e 1.200 euros limpos — sem recibos, sem IVA, sem segurança social.

Uma necessidade transformada em cultura

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Segundo o sociólogo Ricardo Matias, do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, “estas barbearias informais são o espelho de uma juventude que não se revê no mercado formal de trabalho e que encontra nestes espaços uma forma de construir identidade, rendimentos e respeito no bairro”. Para muitos jovens de origem africana ou cigana, a barbearia é também um território de afirmação estética, onde a expressão cultural se manifesta no traço do corte, na conversa franca e na relação com os clientes.

Apesar disso, a informalidade traz riscos sérios. Não há contratos de trabalho, nem seguro de acidentes, nem sequer formação certificada. Um estudo realizado em 2023 pelo Observatório das Desigualdades revela que mais de 65% destes barbeiros informais não completaram o ensino secundário e nunca frequentaram cursos de estética ou higiene capilar.

Falta de regulação, excesso de procura

Os salões licenciados, por sua vez, sentem a pressão. Segundo Catarina Reis, porta-voz do SIPEC (Sindicato dos Profissionais de Estética, Cabeleireiro e Beleza), “há uma quebra de até 30% no volume de clientes em algumas barbearias tradicionais das periferias. Enquanto os barbeiros formais têm que pagar licenças, seguros, IRS e IVA, os informais operam fora de qualquer obrigação legal”.

A ASAE confirma que tem conhecimento da situação, mas enfrenta limitações operacionais. "São espaços difíceis de localizar, muitas vezes dentro de residências privadas. Sem denúncia formal, é praticamente impossível agir dentro da legalidade", revela um inspector que preferiu manter o anonimato. Em 2022, foram registadas apenas 19 acções de fiscalização relacionadas com actividades ilegais de estética capilar em zonas residenciais.

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O talento à espera de oportunidade

Apesar dos riscos, é difícil ignorar o talento que ali floresce. Em Chelas, Lisboa, encontramos o caso de Amilcar Fernandes, de 31 anos, que nunca teve uma barbearia formal mas tem mais de 20 mil seguidores no Instagram. Os seus vídeos a executar cortes criativos viralizaram entre jovens da margem sul, levando-o a ser convidado para workshops em academias privadas.

“Já tentei abrir um espaço, mas pedem-me 4 mil euros só para o arranque, sem contar com o seguro, contabilidade e formação obrigatória. Isso é impossível para mim”, confessa. Casos como o de Amilcar são tantos que a Escola Profissional Bento de Jesus Caraça está a estudar a criação de um programa-piloto chamado "Barbearia Cidadã", que visa integrar jovens barbeiros informais em ciclos de formação acelerada com certificação parcial.

Mais que cabelo: um espaço de comunidade

O valor destas barbearias não se mede apenas em euros. Elas tornaram-se pontos de encontro, espaços seguros onde se discutem problemas do bairro, se partilham conselhos de vida, se trocam ideias sobre música, moda ou empreendedorismo. Hélder Ramos, de 34 anos, cliente habitual no Bairro do Lagarteiro (Porto), afirma: “Eu venho aqui todas as sextas, mesmo que não precise de cortar. Isto é terapia, é convívio. Aqui não sou só um cliente, sou parte da mobília.”

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As barbearias informais substituíram as antigas associações culturais, clubes juvenis e cafés de esquina que foram fechando ou perdendo relevância nas últimas décadas. E, de certa forma, reinventaram a figura do barbeiro como conselheiro, animador, ouvinte — e por vezes até mediador comunitário.

Conclusão: reconhecer o valor para poder regular com justiça

O crescimento das barbearias de garagem reflecte uma realidade mais profunda: há uma juventude que quer trabalhar, que tem talento, mas que se vê empurrada para fora das estruturas formais. Ignorar este fenómeno é empurrá-lo ainda mais para a clandestinidade; reprimi-lo sem alternativas é desperdiçar capital humano e social.

A solução talvez não esteja em multar nem em fechar portas, mas em abrir possibilidades. Criar programas de regularização parcial, oferecer formação gratuita, apoiar a legalização progressiva com acompanhamento social pode ser o caminho. Afinal, por trás de cada corte, há uma história de resistência, criatividade e vontade de vencer.