O paradoxo das portas fechadas: quando a chave existe, mas o país não gira a fechadura
Em pleno século XXI, há algo de profundamente desconcertante no silêncio que se alastra por tantas aldeias portuguesas. Casas com telhados inteiros, paredes firmes e janelas com cortinas de renda, mas onde ninguém mexe uma colher de pau há anos. Enquanto isso, nas grandes cidades, milhares aguardam anos por um tecto digno. É a realidade absurda que se vive hoje em Portugal: temos casas a mais onde não há gente, e gente a mais onde não há casas.
Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam que, em 2021, havia mais de 723 mil alojamentos familiares clássicos sem residentes habituais. Em distritos como Guarda, Vila Real ou Bragança, quase 40% do património habitacional encontra-se devoluto ou subutilizado. Tomemos como exemplo a aldeia de Aveloso, no concelho de Sernancelhe: ali, das 137 habitações registadas, apenas 38 têm ocupação permanente. O restante são memórias de verão, propriedades herdadas ou, simplesmente, esquecidas.
Em Ferraria de São João (Penela), apesar dos esforços da associação local "Reflorestar Portugal" em revitalizar a aldeia com iniciativas sustentáveis, muitos dos imóveis continuam sem qualquer função. O contraste é gritante quando se compara com freguesias como Marvila ou Campolide, em Lisboa, onde uma família com dois filhos pode esperar mais de 7 anos por um apartamento de renda acessível.
Quando o que falta é vontade de ligar os pontos
É em localidades como Lamas de Olo (Vila Real) e Podence (Macedo de Cavaleiros) que a dimensão humana deste problema se torna quase poética, no sentido mais trágico do termo. Os jovens vão-se embora porque não vêm futuro. Os velhos morrem e deixam chaves sem destino. E as casas, outrora cheias de vozes, vão ficando caladas, como livros fechados.
Maria de Lourdes, 78 anos, vive sozinha em Vilarinho da Castanheira (Carrazeda de Ansiães). "Aqui não há crianças há mais de dez anos. Tenho sete casas à volta da minha, todas dos meus primos. Estão em França, Suíça... Nunca mais vieram."
No outro extremo do país, Inês e Rafael, um jovem casal de Setúbal, vivem num T1 arrendado por 790€ mensais, sem contrato formal. "Já pensámos ir para o interior, mas tudo o que é habitável está nas mãos de herdeiros que nem sabem que têm ali uma casa", lamenta Rafael.
Nós, os herdeiros do imóvel abandonado
A multipropriedade é um dos maiores entraves. Uma casa em ruínas pode ter oito ou dez donos, muitos dos quais emigrados, outros falecidos, e alguns simplesmente incontactáveis. A ausência de um regime jurídico eficaz para resolver estas situações transforma oportunidades em becos sem saída.
A fiscalidade também não ajuda. Embora o IMI agravado para imóveis devolutos tenha sido previsto, a sua aplicação é inconsistente e muitas câmaras municipais não dispõem dos meios técnicos ou humanos para fiscalizar devidamente estas situações.
Do papel à prática: há esperança nos projectos locais
Felizmente, surgem exemplos que mostram ser possível virar esta narrativa. Em Idanha-a-Nova, o programa "ArrendaFácil" permite a jovens arrendar casas devolutas por valores simbólicos (entre 50€ e 100€ mensais), desde que garantam permanência mínima de cinco anos. Segundo a autarquia, 42 famílias aderiram à iniciativa entre 2021 e 2023.
Na região de Viseu Dão Lafões, o projecto-piloto "A Minha Primeira Casa" está a criar pontes entre proprietários idosos e casais jovens, promovendo o uso das casas vazias com base em contratos de comodato com apoio legal. A ideia é simples: um ganha companhia e ajuda, o outro ganha tecto e oportunidade.
Em Bragança, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) está a liderar um consórcio com várias câmaras municipais para transformar edifícios devolutos em residências para estudantes. O projecto, que conta com financiamento europeu, já identificou 113 imóveis com potencial de reabilitação.
A urgência de reaprender a habitar
O tema não é apenas económico. É social, cultural e, até, identitário. O abandono das casas é também o abandono da memória colectiva, dos nomes escritos a giz nas traseiras das portas, das conversas na soleira ao fim da tarde.
Numa altura em que o país investe milhões em construção nova, urge perguntar: não estará Portugal a esquecer-se de que já tem casas suficientes? O que falta é ligá-las a quem delas precisa. E isso, como tão bem sabemos, não se resolve com betão, mas com vontade política, legislação ágil e uma mudança de mentalidade.
Porque o verdadeiro património não são as paredes, é a vida que nelas se escreve. E Portugal não pode continuar a escrever o seu futuro com portas fechadas.