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Classe Média Portuguesa: Dívidas às Alturas e Orçamento Familiar ao Máximo

Cada vez mais famílias da classe média em Lisboa, Porto e interior pelejam com crédito à habitação, cartões e financiamento estudantil — damos voz a quem sente o aperto e analisamos causas, dados e possíveis soluções.

Rui Muniz Ferreira Rui Muniz Ferreira Jornalista de Economia e Educação | Porttugal
4 Minutos
2025-07-03 18:16:00
Classe Média Portuguesa: Dívidas às Alturas e Orçamento Familiar ao Máximo

O fenómeno do endividamento da classe média em Portugal tem vindo a assumir proporções particularmente graves, revelando uma tendência de fragilização financeira crescente entre os agregados familiares com rendimentos intermédios. Os dados mais recentes do Banco de Portugal, relativos a janeiro de 2025, indicam que o total da dívida das famílias portuguesas ultrapassa os 159 mil milhões de euros, valor que remonta a níveis não observados desde 2012. Este crescimento do endividamento, que registou um acréscimo homólogo de 3,76%, deve-se sobretudo à pressão exercida pelos encargos com crédito à habitação e consumo corrente. A relação entre dívida das famílias e Produto Interno Bruto (PIB) nacional atingiu os 65%, o que constitui um importante indicador macroeconómico da vulnerabilidade financeira dos agregados.

Em contextos urbanos como Lisboa (particularmente nos bairros de Carnide, Marvila e Olivais) e Porto (com destaque para as freguesias de Paranhos e Campanhã), verifica-se um padrão de alargamento dos prazos de financiamento habitacional. Casais jovens, como o caso de Sofia Ferreira, de 36 anos, assistente de marketing residente em Almada, relatam a necessidade de contrair empréstimos com prazos de 40 a 50 anos para garantir o acesso à habitação. A sua taxa de esforço ronda os 52%, valor significativamente superior ao limiar de 35% recomendado pelos especialistas em finanças pessoais. Em simultâneo, custos com creches e educação infantil, como o aumento de 17% na mensalidade da creche da filha de Sofia em 2024, comprometem a capacidade de poupança e de planeamento de médio prazo.

Nas regiões do interior e sul do país, nomeadamente em concelhos como Beja, Moura, Serpa e Vidigueira, o panorama não é menos preocupante. Pequenos agricultores enfrentam crescentes dificuldades em manter a produção agrícola sem recorrer ao crédito bancário. Manuel Fialho, agricultor de 58 anos, explica que, com os custos operacionais em subida, o recurso a financiamento se tornou inevitável para assegurar a continuidade da actividade. Situação semelhante é observável no norte, em localidades como Viana do Castelo, onde o crédito ao consumo serve para colmatar despesas com saúde, educação e energia. A transversalidade do fenómeno é clara, com testemunhos similares a emergirem de zonas como Sátão e Penamacor.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) revelou que 36% dos agregados portugueses têm despesas superiores aos seus rendimentos mensais. Adicionalmente, cerca de 24% estão em situação de sobre-endividamento. Este contexto é alimentado por múltiplos factores estruturais, entre os quais se destacam a estagnação dos salários reais, uma inflação persistentemente superior a 2% (dados do Instituto Nacional de Estatística) e o ciclo de aumento das taxas de juro directoras do Banco Central Europeu. Estas variáveis, conjugadas, deterioram o poder de compra e aumentam a exposição ao risco de incumprimento.

A vulnerabilidade é particularmente acentuada nos contratos de crédito à habitação com taxa variável, predominantes em Portugal. Com a subida da Euribor, inúmeras famílias registaram acréscimos superiores a 200 euros nas prestações mensais desde 2022. João Santos, engenheiro informático residente em Odivelas, testemunha o impacto desta conjuntura na sua vida familiar: "Tivemos de abdicar de saídas, férias e até de actividades extracurriculares para os filhos". A sua esposa, Cláudia, enfermeira em regime hospitalar, acumula turnos noturnos e horas extraordinárias para compensar o desequilíbrio orçamental.

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O retrato repete-se noutros sectores. Ana Costa, docente do ensino básico em Braga, refere que a maioria dos seus colegas mantém linhas de crédito activas para assegurar as despesas regulares. Em Coimbra, o endividamento estudantil é também uma realidade em expansão: mais de 11 mil estudantes recorreram a crédito bancário bonificado em 2023, com garantia pública, segundo o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Este endividamento precoce compromete a autonomia financeira futura dos jovens recém-formados.

Entre as causas mais estruturais encontra-se a crescente inacessibilidade do mercado habitacional. A liberalização do arrendamento urbano, promovida no contexto do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), contribuiu para o aumento significativo dos valores das rendas. Em Lisboa, o valor médio das rendas ultrapassou os 1.400 euros mensais em 2024 (dados Idealista), tornando-se incomportável para grande parte da população. Este fenómeno é exacerbado pela pressão da procura externa, nomeadamente por parte de investidores estrangeiros, com impactos visíveis na gentrificação de zonas históricas.

Apesar do crescimento do rendimento disponível real das famílias em 10,5% (dados do GPEARI), essa melhoria foi absorvida por um aumento generalizado do consumo, muitas vezes alicerçado em mecanismos de crédito facilitado. Soluções como "compre agora, pague depois", amplamente promovidas por plataformas como Klarna, Cofidis ou Cetelem, contribuíram para a consolidação de um padrão de consumo sustentado pelo endividamento.

O Banco de Portugal tem envidado esforços no sentido da promoção da literacia financeira, através de campanhas institucionais em colaboração com a DECO Proteste e a Direcção-Geral do Consumidor. Iniciativas como o programa-piloto "Orçamento Familiar na Escola" visam incutir noções fundamentais de gestão financeira junto das gerações mais novas. Do ponto de vista académico, instituições como o ISCTE-IUL e a Universidade de Coimbra têm vindo a oferecer acções de formação e cursos livres com enfoque na educação financeira.

Paralelamente, no contexto legislativo, decorrem debates sobre a revisão do quadro regulatório aplicável ao crédito ao consumo e à habitação. As propostas em análise incluem a limitação das taxas de esforço admitidas, bem como o reforço da transparência contratual. Do lado da banca, entidades como a Caixa Geral de Depósitos, o BPI e o Novo Banco têm revisto os seus modelos de avaliação de risco, introduzindo critérios mais exigentes na concessão de crédito.

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Analistas económicos como Susana Peralta (Nova SBE), João Duque (ISEG) e Ricardo Reis (LSE) defendem que a sustentabilidade financeira da classe média exige reformas estruturais, incluindo o aumento dos salários reais e uma estratégia nacional para tornar a habitação mais acessível. O Banco Mundial, numa análise de 2024, posicionou Portugal como um dos países da OCDE com maior proporção de rendimento familiar afecto à habitação — 41%, face a uma média europeia de 30%.

Sob uma perspectiva sociológica, as implicações deste fenómeno são igualmente relevantes. A crescente procura por apoio junto de instituições de solidariedade social, como a Cáritas, a Cruz Vermelha Portuguesa ou as Conferências Vicentinas, demonstra que os problemas de liquidez atingem actualmente famílias com historial contributivo sólido. A Cáritas, por exemplo, reportou um aumento de 18% nos pedidos de auxílio de agregados com pelo menos um membro activo no mercado de trabalho.

O impacto na saúde mental e na coesão familiar é inegável. Rita Almeida, psicóloga comunitária em Faro, identifica a ansiedade financeira como uma das principais causas de perturbações do sono e conflitos conjugais. Um estudo promovido pela Ordem dos Psicólogos Portugueses em 2024 revela que 61% dos adultos inquiridos manifestaram preocupação constante com a sua situação económica.

Este quadro generalizado de fragilidade requer uma resposta articulada entre o Estado, o sistema financeiro e a sociedade civil. Mais do que medidas pontuais, impõe-se uma reestruturação das condições que moldam a vida económica da classe média. A dignidade e a estabilidade a que aspiram milhões de portugueses dependem, em larga medida, da capacidade do país em promover uma economia inclusiva, com acesso equitativo à habitação, educação e crédito justo.

O desafio é grande, mas o tempo para agir é agora.

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