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Quatro gerações, mesma morada: A nova 'arrumação' das famílias em Portugal

A crise na habitação, os baixos salários e a falta de apoios estatais empurram famílias para casas sobrelotadas, onde o conflito de gerações se mistura com afectos e sobrevivência.

Rui Muniz Ferreira Rui Muniz Ferreira Jornalista de Economia e Educação | Porttugal
6 Minutos
2025-05-10 17:44:00
Quatro gerações, mesma morada: A nova 'arrumação' das famílias em Portugal

Coabitação Forçada: Onde o Espaço Acaba e a Resiliência Começa

Em Almada, mesmo ali ao virar da esquina do Cristo-Rei, Maria da Luz Correia, 74 anos, reformada da antiga Caixa Geral de Depósitos, partilha a sua moradia de dois andares com três gerações da sua família. Vive com a filha Catarina (47), que foi despedida em 2021 do sector do turismo, a neta Andreia (26), enfermeira no Hospital Garcia de Orta, e o pequeno Miguel, com três anos e energia para dar e vender.

A sala deixou de ser para visitas. Foi adaptada com biombos comprados no IKEA, um divã antigo e um roupeiro improvisado. A marquise, antes repleta de vasos de cheiros, é agora o gabinete de Catarina, que faz traduções freelance para uma plataforma online. A cozinha, acanhada, é hoje sala de jantar, local de estudo, área de brincar e, muitas vezes, o único espaço onde a família se encontra por breves instantes.

"Não temos escolha. Lisboa está incomportável. Uma renda por um T2 em Cacilhas ronda os 950 euros. Como é que uma enfermeira no público, com pouco mais de 1100 euros por mês, consegue pagar isso e ainda viver?", questiona Catarina, enquanto Miguel tenta equilibrar blocos coloridos em cima da mesa.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o número de famílias multigeracionais cresceu 12,4% entre 2021 e 2024. Mas o que os números não dizem é que, por trás de cada percentagem, há casas que se tornaram campos de resistência, onde a rotina é uma maratona de cedências, negociações silenciosas e muita contenção emocional.

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Famílias que se Apertam e Instituições que Falham

O caso da família Santos, em Vila Nova de Famalicão, é ilustrativo do que acontece por todo o país. Joana, 38 anos, e o marido, operário fabril, voltaram para casa dos pais com os dois filhos, após a renda do apartamento em Guimarães subir 32% num ano. Vivem seis num T2 de 72 metros quadrados.

"Não há descanso. Eu trabalho no quarto ao lado enquanto a minha mãe tenta adormecer o meu filho. As paredes não são de betão, são de nervos", desabafa Joana. Durante a pandemia, o casal chegou a recorrer ao apoio extraordinário da Segurança Social, mas desde então as ajudas têm escasseado.

António Parreira, psicólogo clínico e docente na Universidade de Évora, alerta para os riscos deste modelo: "É um sistema de sobrevivência. Mas onde não há espaço físico, a tensão emocional cresce. Muitos dos avós com quem falo sentem-se excluídos na sua própria casa". Parreira tem vindo a colaborar com o Centro de Apoio à Família do Alentejo, que lançou recentemente o programa “Casa Plena”, uma iniciativa-piloto que oferece sessões de mediação intergeracional.

O Observatório da Habitação da Universidade do Minho publicou em 2023 um estudo com 1.200 famílias onde 44% relataram sintomas de ansiedade devido à sobrecarga habitacional. Entre os jovens, o impacto reflecte-se no rendimento escolar e nos padrões de sono. Em Oeiras, a Escola Secundária Sebastião e Silva alertou para o aumento do número de alunos com sinais de burnout emocional, relacionados com ambientes domésticos instáveis.

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A investigadora Clara Morais, da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, explica que o cérebro de uma criança precisa de previsibilidade e silêncio para consolidar aprendizagem. "Quando a casa é um vaivém constante de tarefas, vozes e conflitos, o cérebro entra em modo de sobrevivência. E isso tem efeitos a longo prazo."

Onde Está o Estado?

Apesar de existir o programa "1º Direito", que visa apoiar as famílias em situação habitacional indigna, em 2024 apenas 18% das candidaturas foram aprovadas nos primeiros seis meses do ano. Muitas permanecem na gaveta, dependentes de burocracias que não acompanham a urgência das vidas que esperam.

No Barreiro, a Junta de Freguesia da Verderena criou um projecto-piloto de habitação partilhada assistida com apoio da Associação Viver com Dignidade. As casas, previamente reabilitadas, acolhem várias famílias com regras de convivência e acompanhamento psicológico quinzenal. "Não resolvemos o problema nacional, mas evitamos que algumas famílias se desintegrem", explica Ana Silveira, presidente da associação.

Em Aveiro, a Câmara Municipal aprovou recentemente um protocolo com a Universidade de Aveiro e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para desenvolver o projecto "ReHabitar+", que visa identificar edifícios devolutos no centro histórico e convertê-los em habitações para famílias em coabitação forçada. A iniciativa arrancará com 15 unidades em 2025.

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O sociólogo Henrique Vasconcelos, do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, considera que "Portugal ainda não tomou consciência de que vive uma crise habitacional estrutural, e não apenas conjuntural". Para o investigador, é preciso "mais do que investimento — é necessária vontade política para repensar o direito à habitação como um pilar da democracia".

Perspectivar um Novo Modelo de Vida?

A coabitação forçada não é sinónimo de fracasso familiar. Mas torna-se uma ferida aberta quando surge da carência e da falta de alternativas. Num país onde o salário mínimo é de 820 euros mensais (dados de 2024) e a renda média de um T2 ultrapassa os 1000 euros em zonas urbanas, a matemática da sobrevivência familiar é, muitas vezes, cruel.

Em zonas como Loures, Seixal e Vila Nova de Gaia, multiplicam-se os casos de famílias inteiras a viver em quartos alugados sem contrato, partilhando casas com estranhos. É a face invisível de uma crise que extravasa os dados oficiais.

Mais do que construir casas, é urgente repensar o modelo habitacional em Portugal. É necessário garantir que as paredes não são fronteiras entre gerações, mas sim pontes que unem sem sufocar. Urge também um investimento sério em políticas de apoio à renda, habitação social e soluções cooperativas.

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Algumas cooperativas habitacionais como a "HabitaCoop" em Coimbra, começam a dar os primeiros passos, com modelos inspirados no norte da Europa: habitação colaborativa com rendas controladas, partilha de espaços comuns e gestão participada pelos moradores.

Enquanto isso, o país continua a encolher-se dentro das suas casas. Porque como diz Maria da Luz, com a voz cansada mas firme: "Família é para se cuidar, mas não é para se apertar até faltar o ar. E aqui dentro, por vezes, já falta o ar há muito tempo."