Portugal encontra-se num ponto de viragem histórica. A entrada da Inteligência Artificial (IA) no quotidiano profissional não é apenas uma tendência passageira, mas uma transformação estrutural profunda, com implicações sociais, económicas e humanas que se farão sentir de norte a sul do país, do litoral às regiões interiores já historicamente mais vulneráveis à mudança. A mais recente investigação promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), através do policy paper "Automação e Inteligência Artificial no Mercado de Trabalho Português: Desafios e Oportunidades", lançou um alerta inequívoco: quase um terço dos empregos em Portugal poderá desaparecer ou sofrer alterações profundas devido à automação.
Este estudo, realizado com base em dados de 120 categorias profissionais e abrangendo 3,2 milhões de trabalhadores e 280 mil empresas, revela que 28,8% das profissões estão no "território do colapso" — sectores em que a substituição por tecnologia é não só possível como provável. Esta tendência tem vindo a materializar-se silenciosamente em municípios como Braga, onde hotéis e pousadas familiares substituem recepcionistas por sistemas automatizados de check-in, ou em Viana do Castelo, onde pequenas unidades fabris começam a adoptar braços robóticos para tarefas repetitivas.
Em Aveiro, por exemplo, uma empresa de embalagens alimentares, outrora dependente de 70 funcionários em turnos rotativos, passou a operar com menos de metade graças à introdução de inteligência artificial preditiva que gere toda a linha de montagem. O impacto imediato foi o despedimento de mais de 20 trabalhadores com mais de 40 anos, muitos deles com formação básica e poucas hipóteses de reintegração sem reconversão profissional.
Em contraste, 35,7% dos empregos resistem à onda tecnológica — estão enraizados no "terreno dos humanos", onde a empatia, o julgamento ético e a criatividade são intransmissíveis a máquinas. É o caso de psicólogos em contexto escolar, educadores sociais em bairros da Amadora, terapeutas ocupacionais em centros geriátricos de Évora, ou técnicos de apoio à infância em creches públicas do Funchal. Estes profissionais, embora menos remunerados do que os engenheiros ou gestores, ocupam posições que dificilmente serão replicadas por algoritmos.
Curiosamente, apenas 22,5% dos postos de trabalho foram identificados como estando "em ascensão" — profissões que beneficiam do uso da IA para ganhos de produtividade e eficiência. Engenheiros de dados, analistas de cibersegurança, especialistas em ética digital, designers de experiência de utilizador e até agricultores tecnológicos, como os da Quinta do Crasto, no Douro, que utilizam drones e sensores para gerir as vinhas com precisão científica.
Entre os mais ameaçados, encontram-se operadores de call center, trabalhadores de armazéns, caixas de supermercado, motoristas e trabalhadores da restauração. Em Vila Nova de Gaia, a SONAE testou com sucesso um sistema robótico logístico (AutoStore), capaz de processar mais de 1.000 encomendas por hora sem qualquer supervisão humana contínua. Em Setúbal, a cadeia Pingo Doce iniciou testes-piloto com sistemas de auto-pagamento inteligentes que adaptam o interface ao perfil do utilizador com base em dados comportamentais.
No setor financeiro, instituições como o BPI, Novo Banco e Caixa Geral de Depósitos já implementaram IA para análise de crédito, scoring de risco e atendimento ao cliente — em muitos casos, substituindo o contacto humano por interfaces de linguagem natural. Segundo dados do Banco de Portugal, em 2024 foram encerrados 312 balcões em todo o território nacional.
No plano regional, os distritos de Viseu, Aveiro, Braga e Vila Real apresentam maiores vulnerabilidades devido à elevada dependência de sectores industriais de média-baixa tecnologia. Por oposição, Lisboa, Porto, Coimbra e Évora destacam-se como centros de resiliência e inovação, graças à forte presença universitária, aos polos de investigação científica e aos ecossistemas digitais emergentes.
No entanto, nem tudo são nuvens carregadas. Um estudo da McKinsey & Company destaca que cerca de 60% dos empregos em Portugal poderão ser adaptados ao contexto da IA de forma colaborativa, ou seja, sem serem substituídos mas reforçados pelas ferramentas tecnológicas. Apenas 6% encontram-se sob risco iminente de substituição total. O mesmo estudo estima que, se Portugal recertificar 1,3 milhões de trabalhadores até 2030, poderá elevar o impacto da produtividade no PIB dos actuais 0,6% para uns expressivos 3,1%.
Para isso, será necessária uma verdadeira mobilização nacional. O Governo encontra-se a ultimar a Agenda Nacional de Inteligência Artificial, cuja apresentação está prevista para o último trimestre de 2025. Esta agenda envolve nomes de relevo como Ana Paiva (INESC-ID e Instituto Superior Técnico), António Murta (Pathena), e representantes de entidades como a AICEP, o INCoDe.2030 e o Portugal Digital.
Em paralelo, centros de inovação como o PACT (Parque Alentejo de Ciência e Tecnologia), em Évora, acolhem actualmente mais de 70 empresas emergentes ligadas à IA, à robótica e à bioengenharia, como a MindProber, que mede emoções humanas em tempo real através de sensores fisiológicos. No Porto, a UPTEC e a Fundação Serralves acolhem programas de aceleração tecnológica com foco na arte e na ciência computacional.
As universidades têm sido peça-chave na resposta a este desafio. O Instituto Superior Técnico oferece formações de curta duração em Inteligência Artificial e ética algorítmica. O ISEG lidera iniciativas ligadas à regulação digital e análise de dados financeiros. Em Braga, a Universidade do Minho disponibiliza cursos de reconversão para trabalhadores com mais de 45 anos, em áreas como Machine Learning, análise estatística e programação aplicada à indústria.
A Fundação José Neves, sediada no Porto e financiada por um dos empreendedores mais influentes do país, lançou ferramentas como o Brighter Future, que permite a qualquer cidadão consultar, em tempo real, a taxa de empregabilidade e rendimento médio de centenas de cursos. O programa ISA-FJN, por seu lado, representa uma alternativa justa ao crédito estudantil: só se paga a formação se houver sucesso profissional.
O IEFP tem reforçado a sua presença em zonas como a Beira Interior, Alto Alentejo e Algarve, com novas unidades de formação focadas em competências digitais. Em 2024, mais de 87 mil pessoas frequentaram cursos ligados às TIC, um aumento de 48% face a 2022, segundo o Relatório de Execução do POCH.
Especialistas apontam cinco pilares para uma resposta robusta e sustentável: requalificação profissional eficaz e acessível; revisão curricular desde o ensino básico até ao universitário, com ênfase na literacia digital e nas ciências computacionais; estratégias regionais diferenciadas; reforço dos mecanismos de proteção social, incluindo apoios à transição profissional; e, por fim, fomento ao empreendedorismo tecnológico, com acesso a financiamento e incubação.
Portugal não pode esperar que os ventos da mudança passem para decidir o rumo. É urgente antecipar, agir e investir. A Inteligência Artificial não é uma ameaça inevitável, mas uma ferramenta que pode ser posta ao serviço do bem-estar e da prosperidade. Se conduzida com visão, equidade e estratégia, esta transição poderá ser o maior salto civilizacional das últimas décadas.
Fontes: FFMS (Abril 2025), SIC Notícias, McKinsey & Company, PACT Évora, Universidade do Minho, IST, ISEG, Governo de Portugal, IEFP, Fundação José Neves, SONAE, Banco de Portugal, POCH.