As novas guardiãs da terra: Histórias de resiliência feminina em Trás-os-Montes e Alentejo
Numa curva da EN217, a poucos quilómetros da vila de Alfândega da Fé, ouve-se o rugido de um velho trator Fiat a subir a encosta. Ao volante, vai Maria Antónia Ramos, 42 anos, com as mãos calejadas da terra e o coração apertado pelo peso de uma vida que não escolheu, mas que se habituou a comandar. Desde que o marido partiu para Lyon, em 2017, nunca mais deu sinal de vida. "Deixou um bilhete e disse que ia procurar melhor vida. Fiquei eu, os miúdos e as oliveiras. Não há tempo para lamentar muito", diz com um sorriso que disfarça o cansaço.
Maria Antónia não está sozinha nesta lida invisível. Segundo o Observatório para a Igualdade no Mundo Rural, da Universidade de Évora, existem em Portugal mais de 3.500 mulheres que chefiam sozinhas explorações agrícolas e famílias. O número, sublinham os investigadores, tem vindo a crescer em distritos como Vila Real, Bragança, Beja e Portalegre. É uma realidade que tem passado ao lado das estatísticas mais visíveis do Ministério da Agricultura.
Em Almodôvar, no Baixo Alentejo, Isabel Rocha, 38 anos, mantém viva a herdade deixada pelos pais. São 12 hectares de montado, com vacas, sobreiros e silêncios que se estendem pela planície. Desde o divórcio que vive com o filho de 6 anos, sem qualquer apoio financeiro do ex-marido. "O meu filho muitas vezes adormece no capô do trator. Ele diz que o calor do motor o embala, e eu aproveito para terminar a rega da vinha", relata. Participou no programa Empreender no Mundo Rural, promovido pelo Instituto Politécnico de Beja e financiado pelo PRR, mas lamenta que "os projectos, embora bem-intencionados, sejam pensados para grandes explorações, com maquinaria que nunca vamos conseguir comprar".
Para estas mulheres, o acesso ao crédito continua a ser um obstáculo quase intransponível. "Fui à Caixa Agrícola de Mértola pedir financiamento para uma estufa e disseram-me que precisava de fiador e de um plano de negócios mais robusto", diz Carla Moreira, agricultora em Vila de Frades. O problema é que Carla vive com o rendimento da terra e de um pequeno subsídio do IFAP. Sem transportes escolares na região, leva a filha de cinco anos de trator até à escola da freguesia vizinha. "Se chove, fico à espera com ela debaixo da lona", conta, com uma naturalidade que revela o quotidiano de quem aprendeu a adaptar-se.
Segundo o INE, mais de 58% da mão de obra familiar no sector agrícola é feminina, mas apenas 29% das explorações são oficialmente geridas por mulheres. Esta disparidade espelha uma realidade de invisibilidade sistémica. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) confirma que não possui dados desagregados sobre mulheres monoparentais no campo. "O problema não é só de média, é de políticas públicas cegas. Falta quem as veja, quem as ouça e quem desenhe medidas com elas e para elas", afirma Maria do Carmo Rodrigues, da direcção da CNA.
Em Sabugal, uma iniciativa pioneira chamada Mulheres com Terra, promovida pela Associação Territórios do Côa, tem vindo a criar redes de partilha entre agricultoras da região. São encontros mensais onde se trocam sementes, técnicas e, sobretudo, palavras de consolo. "Somos mulheres que fazem nascer alimentos e aguentam tempestades, mas que também precisam de ser cuidadas", diz Ana Luísa Ferreira, uma das fundadoras.
A urgência de reconhecer estas mulheres não é apenas moral. É estratégica. Elas mantêm aldeias vivas, evitam o abandono do território e passam conhecimento de geração em geração. Se não forem ouvidas e apoiadas agora, o interior de Portugal perderá não apenas a produção, mas a alma.