O renascimento comercial feito de ferro e criatividade
Está a desenhar-se, um pouco por todo o país, uma revolução silenciosa mas visível na paisagem urbana portuguesa. Pequenos negócios a nascer dentro de contentores marítimos reaproveitados têm vindo a ocupar terrenos esquecidos e becos outrora votados ao abandono. São estruturas metálicas, sim, mas carregadas de humanidade, coragem e reinvenção.
Com maior expressão nas periferias de Lisboa, Porto, Braga e Setúbal, esta tendência cresce impulsionada pelos altos custos de arrendamento e pela falta de espaço para iniciativas de pequena escala. A renda média de uma loja de 50m2 em Lisboa ronda actualmente os 1.200 euros mensais, segundo dados da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), tornando impraticável o sonho de muitos jovens empreendedores.
Joana Ramalho, de 34 anos, viu-se nesse dilema. Natural de Palmela e barista de paixão, sonhava abrir uma cafetaria de especialidade. Encontrou solução junto à zona industrial da Mitrena, em Setúbal, onde transformou um contentor desactivado num recanto acolhedor a que chamou "Latte no Leme". "Com menos de 8.000 euros pus o meu negócio de pé. Se tivesse de alugar uma loja no centro, já tinha fechado portas", afirma com um sorriso genuíno.
Noutros pontos do país, como o bairro da Galiza, em Cascais, ou as zonas de Ferreiros e Gualtar, em Braga, o cenário repete-se: barbearias modernas, lojas de roupa em segunda mão, estúdios de design e pequenas livrarias a ocupar contentores que em tempos cruzaram o Atlântico.
De acordo com o Observatório de Espaços Comerciais Emergentes, em colaboração com a Associação Portuguesa de Urbanismo Adaptativo, existem actualmente mais de 280 contentores transformados em unidades comerciais em Portugal continental, sendo Loures, Almada e Matosinhos os concelhos com mais registos recentes.
Uma solução pragmática e com pegada ecológica reduzida
O custo de instalação ronda entre 6.000 e 18.000 euros, valor que inclui adaptações como isolamento térmico, instalação eléctrica e acabamentos interiores. Para Miguel Palhinha, arquitecto e professor na Universidade Lusófona, "esta é a materialização do urbanismo táctico: respostas rápidas, funcionais e ajustadas ao real."
A startup lisboeta "ReBox Urban Solutions", que trabalha exclusivamente na conversão de contentores para uso habitacional e comercial, estima que cada unidade recuperada evita cerca de 1,2 toneladas de resíduos metálicos. Sara Cortez, engenheira e cofundadora, sublinha: "Estes contentores não são apenas cascas de ferro, são pontes para oportunidades."
Já o Município de Matosinhos lançou em 2024 o programa "Espaço Modular +", que visa legalizar e apoiar micro-negócios instalados em contentores, em terrenos municipais subutilizados. Segundo dados da câmara, o programa já recebeu mais de 40 candidaturas e ajudou a criar 26 postos de trabalho directos.
Um futuro moldado ao gosto da necessidade
Há contentores que hoje funcionam como bancas de hortícolas em mercados biológicos, como em Arraiolos ou Viseu, e outros que servem de ateliês artísticos em Leiria e Aveiro. Em Lisboa, no bairro da Penha de França, um grupo de designers fundou o "Estúdio 21", um cowork criativo num triplo contentor sobreposto, com painéis solares e telhado verde.
Mas nem tudo são boas novas. O enquadramento legal para este tipo de estruturas permanece ambíguo. Muitos destes projectos enfrentam demoras de meses ou mesmo anos na regularização urbanística. Em algumas autarquias, o licenciamento depende ainda de interpretações casuísticas do PDM (Plano Director Municipal).
Em declarações à Deep Report News, o vereador Rui Silva, da Câmara de Loures, afirmou: "É urgente que se crie um regime especial para instalações comerciais modulares. Temos de acompanhar a evolução do comércio e apoiar quem quer trabalhar."
Nas redes sociais, as imagens dos negócios em contentores somam milhares de visualizações. No Instagram, a hashtag #contentorescomerciaisportugal já ultrapassou os 70 mil usos em 2025. E o boca-a-boca faz o resto.
O que era lixo industrial está agora a gerar sustento, inovação e inclusão social. Em tempos de crise habitacional e desemprego estrutural, cada contentor reaproveitado pode ser o embrião de uma nova economia local, mais lével, mais justa, mais nossa.