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Não Chega Para os Remédios: O 'Mercado Negro' Onde Os Reformados Têm de se Desenrascar Para Sobreviver

Com reformas apertadas e acesso médico limitado, cresce em Portugal uma rede informal de trocas e vendas de medicamentos entre idosos, colocando em risco a saúde e a segurança pública.

Rui Muniz Ferreira Rui Muniz Ferreira Jornalista de Economia e Educação | Porttugal
8 Minutos
2025-05-19 12:29:00
Não Chega Para os Remédios: O 'Mercado Negro' Onde Os Reformados Têm de se Desenrascar Para Sobreviver

O novo contrabando silencioso: medicamentos a circular em mãos erradas entre os mais velhos

Na vila de Vimioso, encravada nas fragas do nordeste transmontano, dóna Lucinda, 81 anos, vai vivendo com o que pode. Reformada com pouco mais de 390 euros mensais, partilha a casa com duas galinhas e uma memória não tão firme como antes. "Troco os meus calmantes pela medicação do colesterol da dóna Emília. O médico do centro de saúde só passa por cá de três em três meses, e mesmo assim, às vezes vem outro que não me conhece de lado nenhum", conta, sentada à porta, com um xaile pelos ombros.

O caso de dóna Lucinda não é excepção. Pelo contrário, é cada vez mais regra. Nas zonas do interior de Portugal, onde a desertificação humana se mistura com a escassez de serviços mínimos, multiplica-se um novo tipo de rede subterrânea: a partilha e troca de medicamentos entre idosos. Em Penedono (Viseu), Oleiros (Castelo Branco), Almodôvar (Beja) e Mértola (Beja), formam-se pequenas "farmácias paralelas" alimentadas por sobras, erros de prescrição ou pura necessidade.

Na Amadora, um dos concelhos com mais densidade populacional do país, a situação repete-se, mas com contornos urbanos: "Tenho um grupo no WhatsApp só de malta da nossa idade. Chamamos-lhe 'Caixa de primeiros socorros'. Quando falta um medicamento a alguém, pergunta-se ali e logo se resolve", partilha o Sr. Adelino, 74 anos, antigo serralheiro.

Este fenómeno não está documentado nas estatísticas oficiais, mas é conhecido dos profissionais de saúde que trabalham no terreno. Segundo o Relatório da Apifarma de 2023, mais de 15% dos utentes com mais de 70 anos referem ter dificuldades regulares em aceder à totalidade dos medicamentos prescritos. E quando o acesso legal falha, criam-se atalhos informais, com todos os riscos que isso implica.

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Entre a legalidade que não chega e a sobrevivência improvisada

A socóloga Filipa Barreto, investigadora da Universidade da Beira Interior, tem acompanhado de perto o fenómeno. "Não é um movimento organizado no sentido clássico, mas é transversal ao território e profundamente enraizado na vida comunitária. O problema é que, sendo informal, é também invisível para o sistema nacional de saúde."

E invisível é também o drama de quem se vê obrigado a pagar por medicação partilhada. Aníbal Costa, de 76 anos, morador em Paço de Sousa (Penafiel), viveu isso na pele: "Precisei de Sertralina, que me ajuda a dormir e a não pensar em coisas tristes. Como o médico só tinha consulta para dali a dois meses, paguei 10 euros a um vizinho por uma caixa. Sei que não devia, mas se fosse esperar..."

É um problema que se estende a medicamentos essenciais como Enalapril, Metformina ou Atorvastatina, todos usados no controlo de doenças crónicas. Em Portalegre, um estudo promovido pelo Instituto Politécnico revelou que 12% dos idosos inquiridos admitiram ter trocado ou comprado medicação fora da farmácia no último ano.

Segundo dados do INE e do Relatório Anual da Ordem dos Farmacêuticos, cerca de 7% dos medicamentos em circulação em Portugal acabam por ser utilizados por pessoas diferentes das inicialmente prescritas. As classes mais envolvidas são os anti-hipertensores, ansiolíticos, antidepressivos e reguladores do colesterol e da glicemia. Estes dados não incluem, porém, a vertente do mercado negro ou das trocas informais, o que significa que o número real pode ser bastante superior.

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Profissionais sem meios e sistemas a claudicar

O enfermeiro João Vilar, que trabalha há 14 anos no Centro de Saúde de Castro Daire, não tem dúvidas: "Nós, na linha da frente, sabemos que isto acontece. Os idosos contam, confiam, pedem conselhos. Mas não temos capacidade de resposta domiciliária regular. Falta pessoal, falta tempo, falta vontade política."

A realidade não se resume ao interior. No centro de saúde de Queluz, a médica de família Marta Alves relata situações semelhantes: "Tenho utentes que me pedem para renovar receitas com base no que o vizinho está a tomar. Acham que, sendo da mesma idade, os problemas são iguais. Mas a automedicação pode ser fatal."

Por seu lado, o Sindicato Independente dos Médicos tem alertado para o envelhecimento acentuado do corpo clínico nos cuidados primários, e para a falta de incentivos à fixação de profissionais em zonas de baixa densidade. "A acessibilidade à saúde é hoje uma lotaria. E quem perde, geralmente, são os mesmos de sempre", denuncia a presidente da estrutura, Dra. Maria Germana Tavares.

Uma urgência pública, uma resposta adiada

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A ProIdoso, em conjunto com a Rede Europeia Anti-Pobreza, tem vindo a pressionar o governo para a implementação de um programa nacional de reaproveitamento e redistribuição supervisionada de medicamentos. Uma espécie de "banco de medicamentos" com controlo farmacêutico, inspirado em modelos como o espanhol Banco Farmacêutico de Catalunha.

O projeto-piloto "Farmácia Solidária", que arrancou em 2023 em Coimbra, com apoio da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, recolheu mais de 2 mil caixas de medicamentos ainda dentro do prazo de validade. A distribuição foi feita sob supervisão clínica, mas o projeto está parado por falta de financiamento estatal.

Para já, as iniciativas são locais e pontuais. Em Évora, a Associação Ponto de Apoio criou o projeto "Remédio Justo", que tenta mediar entre farmácias e utentes carenciados. Mas sem enquadramento legal robusto, estas ações tornam-se vulneráveis. A própria Direção-Geral da Saúde reconheceu em documento interno que "existem barreiras legais e logísticas significativas para a institucionalização deste tipo de iniciativas".

O tempo, sempre o tempo, a correr contra os mais velhos

Num país onde quase 23% da população tem mais de 65 anos, segundo o Censos 2021, o que se está a desenhar é um escândalo silencioso. Por trás de cada cartela de comprimidos trocada está uma história de abandono, uma estrutura de cuidados que falhou, uma vida a sobreviver como pode.

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E enquanto as soluções são adiadas entre comissões e promessas, milhares de portugueses continuam a gerir a sua saúde como quem troca figos por ovos no mercado. A diferença é que agora, o que se troca pode custar vidas.

O problema não é apenas de acesso à medicação, mas de dignidade e justiça social. Porque envelhecer em Portugal não pode significar ser empurrado para os cantos esquecidos da sociedade, onde até os medicamentos se tornam moeda de sobrevivência.