O aroma do passado que regressa ao presente
Numa era marcada pela pressa e pelo consumo imediato, algo silencioso e profundamente simbólico está a ganhar forma nos fornos de norte a sul de Portugal. Não se trata apenas de uma moda gastronómica, mas de um verdadeiro regresso às origens. Padeiros artesanais estão a recuperar os cereais ancestrais portugueses e a reintroduzir a fermentação natural como eixo da sua produção. Trata-se de um movimento cultural, alimentar e social que merece atenção urgente.
Os cereais que a modernidade esqueceu
Durante o século XX, a industrialização do pão levou à padronização da farinha, muitas vezes à custa do sabor, da nutrição e da sustentabilidade. Cereais como o trigo barbela, a espelta, o centeio e a tremoça desapareceram dos campos e dos fornos. Seguindo a lógica da produção em massa, variedades mais rápidas e economicamente rentáveis ocuparam o seu lugar.
Segundo dados da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), apenas 2% dos cereais cultivados actualmente em Portugal são de variedades tradicionais. É uma perda silenciosa de biodiversidade alimentar.
Mas esta tendência está a inverter-se.
Lisboa, Porto e o renascimento das mãos calejadas
Na freguesia da Ajuda, em Lisboa, Diogo Amorim fundou a Gleba em 2016 com um objectivo claro: reinventar o pão com base em cereais portugueses moídos em mós de pedra. "Temos de voltar a respeitar o solo e o tempo. O pão que fazemos precisa de 48 horas desde o grão até à mesa, mas cada minuto conta", afirma Amorim.
Hoje, a Gleba trabalha com mais de 20 pequenos produtores, da Beira Baixa ao Alentejo, ajudando a reativar variedades como o trigo barbela e o trigo vermelho do Alentejo, praticamente extintos do mercado.
No Porto, a padaria Boroa aposta no mesmo caminho. Localizada na Rua do Rosário, combina farinhas integrais com fermentação lenta, num processo que pode durar mais de 36 horas. "Somos contra o pão de supermercado, cheio de melhorantes. Aqui, usamos apenas farinha, água, sal e tempo", diz Rita Machado, padeira e cofundadora.
A ciência por trás da massa mãe
A fermentação natural — ou massa mãe — está longe de ser uma moda hipster. É um processo milenar, usado desde os egípcios, que preserva enzimas, melhora a digestibilidade do glúcenio e contribui para o equilíbrio da flora intestinal.
O Instituto Superior de Agronomia (ISA), em Lisboa, tem estudado o impacto da fermentação natural em pães portugueses. Um estudo conduzido em 2022 mostrou que o pão de fermentação lenta possui um índice glicémico 25% inferior ao pão industrial branco.
A padaria Pão Real, em Mafra, famosa pelo seu pão de fermentação de 24 horas, tornou-se um ponto de referência nacional. Segundo a proprietária Helena Morais, "o pão não deve ser apressado. A massa tem de respirar, crescer e transformar-se com tempo e cuidado".
Sustentabilidade que se come
A produção industrial de pão é altamente intensiva em energia, transporte e desperdício. Ao recuperar cereais locais e moagens artesanais, os padeiros artesanais estão também a promover uma cadeia alimentar mais curta e com menor pegada de carbono.
De acordo com um estudo da Universidade de Évora, a produção local de trigo barbela pode reduzir em até 42% as emissões de CO2 associadas à panificação, comparando com trigos importados e farinhas refinadas.
Cultura, educação e património vivo
Em Seia, o Museu do Pão não é apenas uma atracção turística. Ali preserva-se a história, as ferramentas e as técnicas que definiram o pão no contexto rural português. Oficinas com moinhos de pedra, fornos a lenha e amassaduras manuais têm sido promovidas por escolas e instituições locais.
O Festival Pão de Portugal, em Albergaria-a-Velha, tem reunido dezenas de padeiros de todo o país, permitindo a troca de experiências e receitas entre gerações. Em 2023, o evento contou com mais de 8.000 visitantes e workshops com mestres moleiros da região Centro.
Desafios que não se resolvem com fermento
Apesar do entusiasmo, os desafios continuam. O custo da farinha de cereais antigos é 3 a 5 vezes superior à farinha industrial. A escassez de mõs de pedra e de moleiros experientes é outro entrave. Em Portugal existem apenas cerca de 30 moinhos activos em condições comerciais.
Além disso, o consumidor ainda associa o "pão tradicional" ao pão branco da padaria local, muitas vezes produzido com misturas e melhorantes. A mudança exige educação alimentar e campanhas de sensibilização.
O futuro fermenta-se hoje
A verdade é que este movimento é mais do que uma tendência gourmet. É uma necessidade alimentar, ambiental e cultural. O pão, esse alimento simbólico, volta a ser feito com alma, tempo e propósito.
Em 2024, o Governo lançou o projecto "Cereais do Futuro", em parceria com o INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária), com o intuito de apoiar financeiramente agricultores que se comprometam a cultivar variedades tradicionais.
Talvez não se trate apenas de comer melhor. Trata-se de saber de onde vimos e para onde vamos. E, ao que parece, esse caminho faz-se com miolo, crosta e memória.