Viver com o salário mínimo
A decisão do Governo de aumentar a remuneração mínima mensal garantida (RMMG) para 870 euros a partir de 1 de janeiro de 2025, ao abrigo do Decreto‑Lei n.º 112/2024, colocou Portugal no centro do debate sobre se o salário mínimo basta para viver ou apenas para sobreviver. Segundo dados oficiais, cerca de 838 mil trabalhadores — o equivalente a 21 % da força laboral — recebem o salário mínimo nacional. O valor é pago em 14 parcelas, incluindo os subsídios de Natal e de férias. O aumento foi de 6,1 % face a 2024, mas continua abaixo do custo de vida nas grandes cidades. Em regime de tempo parcial, a remuneração é ajustada proporcionalmente: quem trabalha 20 horas semanais recebe 435 euros.
A lei é única em todo o território continental, mas as regiões autónomas têm salários mais elevados: na Madeira a RMMG é de 915 euros e nos Açores de 913,50 euros. Apesar do aumento, especialistas avisam que viver com 870 euros só é possível com uma gestão rigorosa. Um estudo da Wise, baseado em dados da plataforma Numbeo, estima que uma pessoa sozinha tenha despesas médias mensais de 682,60 euros, sem incluir renda. Nas cidades do litoral, onde as rendas, transportes e alimentação são mais caras, muitos trabalhadores gastam mais de metade do ordenado em alojamento. O salário médio em Portugal rondava 1 525 euros no primeiro trimestre de 2025, mas essa média esconde disparidades regionais e setoriais.
A jornalista Maria Costa, que vive em Lisboa, confessa que o aumento “mal dá para compensar a subida das rendas”, enquanto João Fonseca, operário em Ponte de Lima, consegue poupar ao regressar à casa dos pais na aldeia. O problema, diz, “é que nem todos podem voltar para o campo”. No interior, onde o custo de vida é mais baixo e as oportunidades de emprego mais escassas, muitos jovens aceitam salários mínimos porque não há alternativa. A disparidade regional e a concentração de emprego nas áreas metropolitanas criam um paradoxo: para ganhar um salário maior é preciso viver onde tudo custa mais.
Desterrados na própria terra
O desequilíbrio entre salários e preços de habitação empurrou milhares de famílias para listas de espera intermináveis. Em julho de 2025, pelo menos 31 035 famílias aguardavam uma habitação nos 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML), segundo uma contagem da agência Lusa. Lisboa lidera com cerca de 15 700 agregados — 8 700 inscritos no Programa de Arrendamento Apoiado e 7 000 na Renda Acessível. Seguem‑se Sintra (4 000 famílias), Setúbal (1 963), Oeiras (1 467), Cascais (1 371), Odivelas (1 220), Amadora (1 200) e Loures (1 000). Outros municípios, como Barreiro, Alcochete ou Moita, registam menos de mil candidaturas, mas os números escondem realidades dramáticas: no Barreiro, 812 pedidos correspondem a 3 248 pessoas, com rendimento médio per capita de 325 euros, e em Sintra os 4 000 pedidos representam cerca de 10 000 pessoas.
Apesar de alguns avanços, a resposta municipal tem sido insuficiente. Lisboa, liderada por Carlos Moedas (PSD), entregou cerca de 3 000 casas, Sintra atribuiu 1 513 fogos e tem mais 204 prontos, Oeiras está a construir 743 habitações e a reabilitar 58, enquanto Cascais planeia erguer 3 600 casas até 2028. Almada, comandada por Inês de Medeiros (PS), entregou 159 casas e iniciou obras para mais 270. Odivelas reabilita 52 habitações e constrói seis novos empreendimentos, e Amadora investe com recursos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), adquirindo 22 lotes. Ainda assim, as câmaras municipais reconhecem que o problema vai além da escala local e pedem um Plano de Emergência Nacional para a Habitação. Basílio Horta (PS), presidente da Câmara de Sintra e da AML, defende que a habitação é um direito constitucional e que o Estado deve coordenar medidas de emergência, apoio aos sem‑abrigo, combate à indignidade habitacional e reforço do arrendamento acessível.
Para além da escassez de oferta pública, o mercado privado tornou‑se inacessível. Em 2024, os preços das casas aumentaram mais de 9 % e o preço mediano de um apartamento T2 subiu para 270 789 euros, o que corresponde a 15,7 anos de rendimento líquido anual de uma família média (17 297 euros). A situação é ainda mais grave em Funchal (23,2 anos), Faro (22,8 anos) e Lisboa (21,1 anos). No Porto, comprar casa exige 16,4 anos de rendimentos e em Aveiro 15,6. Nas capitais de distrito do interior como a Guarda (4 anos) ou Castelo Branco (4,5 anos), o acesso é menos difícil, mas a escassez de oportunidades de emprego faz com que muitos residentes emigrem para o litoral. Em Lisboa, o preço médio de uma casa ronda 484 390 euros, em Funchal 439 804 euros e em Faro 396 010. As rendas também dispararam: em 2024 subiram em média 7 %, o aumento mais acentuado em 30 anos. António Frias Marques, presidente da Associação Nacional de Proprietários, lamenta que os imóveis que aparecem no mercado sejam adquiridos por estrangeiros ricos, empurrando os portugueses para fora das suas cidades. “Nós é que ganhamos pouco”, resume, assinalando que o preço dos supermercados é semelhante ao de França, mas o rendimento médio é três vezes inferior.
Esta realidade afecta todo o país. Em Viana do Castelo, distrito que inclui Ponte de Lima, comprar uma casa exige 12,9 anos de rendimento familiar. Muitos habitantes migraram para o interior ou para o estrangeiro em busca de habitação mais acessível. A desertificação das aldeias contrasta com a pressão urbanística nas grandes cidades, gerando novos paradoxos: vilas com imóveis a preços baixos mas sem gente; metrópoles com empregos mas sem casas a preços comportáveis.
Envelhecer sozinho em Portugal
O país que expulsa famílias jovens também deixa os mais velhos sozinhos. A Cruz Vermelha Portuguesa alerta que mais de 500 mil idosos vivem sozinhos e que este número cresce 2 % por ano. Portugal tem a maior percentagem de população idosa da União Europeia e a quarta maior do mundo. Em 2024, a linha de Teleassistência da Cruz Vermelha recebeu 32 481 chamadas, das quais 57 % tinham por objectivo mitigar o isolamento social. A instituição efectuou ainda 144 929 chamadas proactivas para verificar o bem‑estar dos utentes. Entre 2023 e 2024, os pedidos de ajuda à organização aumentaram 73 % e o apoio a pessoas sem‑abrigo subiu 80 %, ao mesmo tempo que o número de refeições diárias servidas cresceu 34 %. A procura por bens essenciais aumentou 62 % e as saídas para alojamentos permanentes caíram 31 %, por falta de soluções acessíveis.
Os números não surpreendem à luz da evolução demográfica. Em 2024, Portugal tinha 10,75 milhões de residentes; a proporção de pessoas com 65 anos ou mais ultrapassava 24,1 % e a dos jovens até 15 anos era de apenas 12,8 %. O índice de envelhecimento atingiu 192,4 idosos por cada 100 jovens, o segundo valor mais alto da União Europeia, apenas abaixo da Itália. O índice de dependência de idosos passou de 15,6 em 1970 para 38,6 em 2024, aumentando a pressão sobre a população activa. A idade mediana situava‑se nos 47,3 anos. Estas tendências demográficas evidenciam a necessidade de políticas que combatam a solidão e promovam a intergeracionalidade.
Exemplo disso é o projecto “Aldeias Sem Fronteiras”, promovido pela ADER‑SOUSA e pela CORANE, que envolveu nove concelhos das Terras do Sousa e da Terra Fria Transmontana — Felgueiras, Lousada, Paços de Ferreira, Paredes, Penafiel, Bragança, Miranda do Douro, Vimioso e Vinhais — abrangendo 40 freguesias e mais de 303 actividades. O projecto, cofinanciado pelo Programa de Desenvolvimento Rural, promoveu a inclusão social e a redução do isolamento através da dinamização comunitária e do diálogo intergeracional. As suas actividades visaram a coesão social, a valorização do património local e a construção de pontes entre gerações. Iniciativas como esta mostram que é possível quebrar o isolamento dos idosos, recuperar saberes ancestrais e criar redes de apoio locais.
O Governo, por seu lado, aprovou no início de 2024 o Plano de Ação para o Envelhecimento Ativo e Saudável, composto por 135 medidas e um orçamento de 1 300 milhões de euros. O programa pretende promover a saúde, o bem‑estar, a autonomia e a vida independente dos seniores, através de investimentos em centros de dia, infraestruturas de apoio e iniciativas culturais. Especialistas em gerontologia recordam que combater o idadismo passa por dar visibilidade e oportunidades às pessoas idosas, e que as políticas culturais e sociais devem ser duradouras e territoriais.
Uma sociedade a puxar por todas as pontas
As três crises — salários baixos, casas incomportáveis e solidão dos idosos — estão profundamente interligadas. O salário mínimo não acompanha os custos de vida e empurra as famílias para a periferia, alimentando listas de espera recorde e dificultando a renovação geracional. A fuga das cidades agravou a desertificação do interior e deixou os mais velhos isolados. A habitação tornou‑se um bem de luxo, enquanto as pensões de reforma são insuficientes para pagar rendas de mercado. Esta combinação está a corroer a coesão social e a lançar o país numa espiral de desigualdades.
Para travar este ciclo é necessário um conjunto articulado de políticas. A curto prazo, medidas de emergência como o Plano de Habitação e o Plano de Envelhecimento Ativo devem ser acompanhadas por uma actualização substancial do salário mínimo, indexada à produtividade e ao custo de vida. A médio prazo, o Estado e os municípios precisam de coordenação para construir habitação pública, reabilitar o parque existente e regular as rendas. Simultaneamente, o investimento em programas intergeracionais, como o “Aldeias Sem Fronteiras” e nas artes comunitárias, pode reduzir a solidão e reavivar comunidades rurais. O desafio é enorme, mas as soluções existem: passa por tratar o direito à habitação, a dignidade salarial e o envelhecimento com a mesma prioridade. Sem elas, Portugal arrisca‑se a continuar a perder os seus jovens, a envelhecer sozinho e a tornar‑se um país de casas vazias e vidas vazias.