O Portugal dos que vivem do que os outros deitam fora
Enquanto Lisboa se embrenha em congressos de tecnologia, debates sobre blockchain e inteligência artificial, há um outro Portugal, tão real quanto esquecido, que sobrevive nos interstícios do progresso. Um país que não aparece nas brochuras promocionais nem nos planos estratégicos de digitalização. É o Portugal dos "sucateiros do campo", homens e mulheres que fazem daquilo que os outros abandonam o seu ganha-pão, num sistema paralelo de sobrevivência que pouco ou nada deve à formalidade.
Em localidades como Vale da Mula, nos arredores de Sabugal, ou em Rebordelo, uma freguesia recôndita de Vinhais, a prática é tão antiga quanto invisível. Na aldeia de Azaruja, no Alentejo Central, ou em Santa Susana, nos limites do concelho de Alcácer do Sal, as vozes ouvem-se baixinho, quase em sussurro, mas o som do ferro a tilintar no fundo das carrinhas denuncia uma rotina que muitos fingem não ver.
Histórias com rosto e nome
José Manuel Dias, natural de Vinhais e com 58 anos feitos no mês passado, carrega ao ombro mais de trinta anos de sucata. A sua carrinha Ford Transit de 1996, com a pintura já rendida ao tempo, é oficina, transporte, armazém e abrigo. "A gente aqui aprendeu a viver com pouco. Se não fosse isto, talvez tivesse ido para França. Mas nunca quis abandonar a terra. Isto é o que sei fazer, não me envergonho."
José percorre semanalmente sete aldeias entre Bragança e Vimioso. Pede em casas onde já o conhecem, passa em ruínas onde o tempo empilha televisores sem ecrã e frigoríficos ocos. O quilo do cobre, segundo o índice semanal da LME (London Metal Exchange), chegou a valer 4,12 euros em abril deste ano, uma das maiores altas desde 2021. Mas o ferro? Fica-se pelos 18 cêntimos. Ainda assim, diz, "dá para pagar o gás e um pacote de massa para o mês todo."
Um fenómeno social à margem da lei, mas não da moral
Joaquim Lopes, 43 anos, de Santa Susana, é pai de dois filhos e vive num anexo construído por ele próprio com blocos reaproveitados de uma obra abandonada em Grândola. "Nunca mexi no que é dos outros. A sucata tem dono: é o tempo que a entrega." Para muitos destes trabalhadores informais, há uma ética própria, um código silencioso: nada se leva sem pedir. Nada se rouba. Quando há denúncias, são quase sempre falsas, diz.
A ASAE pouco intervém. E a GNR, segundo fontes locais, "fecha os olhos, porque sabe que são casos sociais". A Câmara de Almodôvar chegou a lançar um pequeno programa-piloto de feiras ecológicas em 2021, onde os sucateiros poderiam vender materiais reaproveitados de forma legal e controlada. A adesão foi baixa. "Têm medo de serem engolidos pela burocracia. Muitos não têm sequer NIF activo. Outros não sabem ler nem escrever", confidencia um funcionário do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) de Beja.
O retrato ignorado nos estudos oficiais
O Centro de Estudos Rurais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), sob coordenação da socióloga Maria João Faria, prepara desde 2023 o primeiro levantamento sério sobre a economia informal nas zonas interiores de Portugal. "A maioria destes trabalhadores não é contabilizada nem como desempregada nem como empregada. Estão num limbo estatístico. Não são alvo de políticas públicas porque simplesmente não existem nos dados."
Segundo o INE, estima-se que 13,7% da população portuguesa activa se encontre envolvida em algum tipo de economia informal. Em regiões como o Alto Alentejo ou o Nordeste Transmontano, esse valor poderá subir para 21%, segundo projeções não oficiais da PORDATA.
Sobrevivência digna ou exclusão estrutural?
Na vila de Moura, um homem que pediu anonimato conta que já foi seguido pela polícia por suspeitas de furto — que nunca se provaram. "Vivemos com medo. Mas também com vergonha. Ninguém quer admitir que sobrevive da sucata."
Ainda assim, há humanidade. E há resiliência. Há gente que levanta antes das galinhas e chega a casa já sem sol, com os braços a cheirar a óleo e as mãos a ferro oxidado. Não pedem esmola. Pedem respeito. Pedem que se olhe para eles com olhos de ver.
Portugal, país de contrastes, precisa urgentemente de reconhecer que há um mundo inteiro entre as cidades que crescem e os campos que resistem. E nesse intervalo vivem milhares que fazem do lixo uma forma de vida. Não de indignidade, mas de perseverança.