Uma rede silenciosa que grita esquecimento: bibliotecas que ninguém frequenta em Portugal
Ao subir pela estrada estreita que conduz à aldeia de Vale da Senhora da Póvoa, no concelho de Vila Flor, o silêncio não se faz apenas ouvir: sente-se. E entre oliveiras centenárias e casas de pedra, surge um edifício moderno, erguido com fundos europeus, onde ainda se pode ler em letras gastas: "Biblioteca Municipal Dr. Amadeu Ferreira". Já lá vão mais de quatro anos desde que aquele espaço viu um leitor cruzar a porta. Hoje, serve apenas para acumular o eco de um projecto que ficou a meio caminho entre a intenção e o abandono.
Este caso está longe de ser um acaso. Segundo apurou o Deep Report News, em investigação conjunta com o SINTAP (Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública) e a BAD (Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas), há pelo menos 36 bibliotecas municipais em Portugal que, apesar de constarem nos registos oficiais, estão encerradas, semi-operacionais ou com um funcionamento meramente simbólico. Espalhadas por 12 distritos, de Bragança a Beja, essas estruturas têm em comum o silêncio dos livros e o esquecimento institucional.
Em Sabrosa, vila transmontana onde nasceu Fernão de Magalhães, a biblioteca local funciona duas horas por semana, sob a responsabilidade de uma funcionária administrativa que admite não ter formação específica. Em Mourão, distrito de Évora, o espaço foi transformado em "centro de apoio logístico" da câmara. Já em Messejana, freguesia do concelho de Aljustrel, no Baixo Alentejo, a biblioteca serve de armazém para equipamentos de jardinagem.
“Dizem que não há procura. Mas como pode haver, se nunca se organizam actividades, se as portas estão quase sempre fechadas?", questiona Joana Lino, 72 anos, professora aposentada que usava a biblioteca de Messejana para orientar os seus alunos em investigações históricas. “Hoje, só os pássaros fazem uso do telhado”, lamenta.
Milhões ao vento: património público sem retorno social
Entre 2007 e 2013, Portugal recebeu mais de 240 milhões de euros para investimentos em equipamentos culturais através do programa POC-Cultura. Uma fatia significativa desse montante foi canalizada para a criação e modernização de bibliotecas municipais. A Biblioteca Municipal de Penamacor, por exemplo, custou mais de 320 mil euros, estando hoje encerrada para "obras" desde 2021, sem que haja um plano público de reabertura.
Contactado pelo nosso jornal, o Ministério da Cultura não soube precisar quantas bibliotecas estão actualmente sem funcionamento. A Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), por sua vez, limitou-se a recordar que cabe às autarquias garantir a operacionalidade dos espaços, afirmando que “nenhuma biblioteca está formalmente desactivada no sistema”.
João Paulo Palma, bibliotecário há mais de duas décadas na cidade de Évora, não esconde a desilusão: “Deixámos de ver a leitura como um direito. As bibliotecas deixaram de ser prioridade política porque não dão votos imediatos. Mas dão futuro, se forem bem tratadas”.
Quando a porta fecha, o mundo encolhe
Em zonas como Trás-os-Montes, Alto Alentejo e Beiras, onde a desertificação humana é uma realidade quotidiana, a biblioteca pode ser o último ponto de encontro, o último recurso de acesso gratuito à cultura, à internet, à informação. Fechá-las é fechar possibilidades.
Miguel Antunes, vice-presidente da Câmara Municipal de Vinhais, reconhece a dificuldade: “Temos o edifício e temos livros. Mas não temos profissionais com formação e, mesmo quando abrimos concursos, não há candidatos. A falta de incentivos para fixar pessoas no interior é transversal.”
E no entanto, há soluções. O projecto BiblioMóvel de Viseu, premiado pela Rede de Bibliotecas Móveis Ibéricas, leva semanalmente livros a mais de 40 localidades do concelho. A Biblioteca de Arcos de Valdevez foi requalificada em 2022 e passou a receber em média 80 visitantes diários, com acções de leitura para crianças, tertúlias e exposições itinerantes.
O desafio da reinvenção: resistir é adaptar
Hoje, uma biblioteca não pode limitar-se a ser um repositório de livros. Tem de ser um centro cultural vivo: com acesso à internet, formações, cinema, apoio escolar, serviços públicos digitais. Há localidades onde a biblioteca passou a ser também posto de turismo, local de reuniões de associações ou sala de estudos em parceria com escolas secundárias.
Segundo dados da Eurostat, Portugal está entre os países com maior cobertura territorial de bibliotecas públicas na União Europeia. O problema é que essa presença é, muitas vezes, apenas simbólica.
Como sublinha Margarida Lopes, docente na Universidade de Coimbra e investigadora em políticas de literacia: “Quando uma biblioteca fecha, perde-se um pedaço de cidadania. E isso não devia ser indiferente a nenhum de nós”.