As Ruínas Que Falam: Histórias Esquecidas de Edifícios Abandonados Que Marcaram Portugal
Entre pedras rachadas e silências que ecoam no véu da pressa moderna, escondem-se fragmentos da nossa identidade coletiva. São escolas, estações, hospitais, palacetes e armazéns outrora vívidos, hoje entregues à ruína. De norte a sul, Portugal carrega no seu património abandonado uma espécie de testamento silencioso. Mas quem o escuta?
Atravessando o vale profundo da Serra da Estrela, chega-se à Covilhã, onde repousa um dos mais emblemáticos espaços esquecidos do país: o Sanatório dos Ferroviários da Cova da Beira. Inaugurado em 1948, quando a tuberculose era uma praga nacional, este edifício albergou centenas de doentes, sobretudo trabalhadores da CP e das minas do Fundão. Durante anos foi referência médica. Hoje, já sem vidros nas janelas nem portas nas salas, é visitado por jovens de mochila ao ombro e câmaras ao pescoço. Um dos visitantes regulares, Miguel Azevedo, 34 anos, engenheiro agrónomo e "explorador urbano", lamenta: “Isto podia ser um centro de memória da medicina em Portugal. Em vez disso, é pasto para o vandalismo e para o esquecimento.”
A poucos quilómetros do Porto, em São Pedro da Cova, Valongo, o antigo Hospital Mineiro assiste impassível à sua própria decomposição. Servia os mineiros da Companhia das Minas de Carvão de Pejães, que durante mais de um século alimentaram o coração industrial do Norte. A mina encerrou em 1970. O hospital, logo depois. Os corredores vazios ecoam os gritos de uma classe que carregou o país sobre os ombros. João Loureiro, antigo operário e hoje com 87 anos, recorda: “Ali tratavam-se fraturas, pneumoconioses e os males da mina. Era o único lugar onde se ouvia a palavra ‘esperança’.”
Em Lisboa, bem perto do bulício do aeroporto Humberto Delgado, ergue-se uma estrutura imponente: o Colégio Militar Feminino de Moscavide. Concebido nos anos 50 para ser o primeiro internato feminino militar do país, nunca chegou a abrir oficialmente. Mitos urbanos alimentam a sua existência: falam-se de corredores subterrâneos, de projectos secretos do Estado Novo, e até de aparições noturnas. Apesar do apelo à reconversão por parte da Junta de Freguesia e de coletivos como o "Reabilitar Moscavide", o edifício continua vedado ao público e em acelerado estado de degradação.
Viajar para o Alentejo profundo é regressar a um tempo onde o comboio era sinónimo de progresso. Em Serpa, no distrito de Beja, jaz um antigo armazém ferroviário do século XIX, silenciado desde o encerramento da linha em 1990. As linhas cobertas de vegetação lembram que ali passavam comboios que ligavam sonhos e mercadorias. António Carapinha, presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro, defende que “Serpa podia acolher um museu ferroviário vivo, tal como o de Lousado. O património ferroviário não é apenas um capricho nostálgico, é um activo cultural e turístico.”
Estes não são casos isolados. Segundo dados recentes do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Universidade do Minho, existem em Portugal mais de 3.200 edifícios classificados como "património edificado em risco". A maioria encontra-se em zonas urbanas degradadas, sem projecto de reabilitação, com risco de colapso físico e desaparecimento da memória social.
Nomes sonantes como o antigo Hotel do Buçaco (Mealhada), a Fábrica de Lanifódios da Covilhã, ou o Convento de Santa Clara em Vila do Conde encontram-se em estado precário. É todo um património industrial, religioso e público que se esvai, invisível ao olhar apressado do quotidiano.
Organizações como a SPIRA – Centro de Estudos do Património, a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), e plataformas cidadãs como o "Portugal Esquecido" têm feito inventários e relatórios fotográficos sobre estes lugares. Há também iniciativas como o "Projeto Revive", do Governo, que visa a concessão de património público a privados para fins turísticos, mas que tem sido criticado por demorar a avançar, ou por não incluir os edifícios de menor visibilidade mediática.
Na cidade de Silves, a antiga Fábrica de Cortiça Mira é exemplo de degradação industrial em plena zona urbana. Com mais de 10.000 m2, foi um dos motores económicos da região até à década de 80. Hoje está cercada por tapumes, apesar de constantes propostas para ser convertida em centro de artesanato, hotel de charme ou pólo universitário.
O abandono não é neutro. Gera riscos de segurança, perda irreversível de património e o que historiadores chamam de "amnésia cultural". A reabilitação, pelo contrário, é motor de emprego, revitalização urbana e sentido de pertença. Segundo o Eurostat, cada euro investido na reabilitação de património tem um retorno estimado de 1,6 euros em valor económico local.
A questão central é esta: estamos dispostos a ouvir as ruínas? A permitir que estas estruturas falem? Elas não nos gritam, mas sussurram. Contam-nos que ali viveu-se, sofreu-se, construiu-se um país. São bibliotecas silenciosas sem livros, mas com estórias nas paredes.
Urge pois encarar este património não como peso morto, mas como potencial ativo. Que cada tijolo solto seja um lembrete da nossa responsabilidade colectiva. Porque se é verdade que o tempo é cego, então que a memória seja os seus olhos.