Lisboa 09 de Maio de 2025 - Em tempos não muito distantes, bastava um acordeonista a puxar pela concertina, um pires de chouriça assada e um copito de tinto para fazer da festa da aldeia um acontecimento do ano. Era ali, no largo principal, entre fitas de papel e luzinhas penduradas, que a comunidade se unia num bailarico daqueles que varavam a noite. Mas os tempos mudaram, e com eles a pulsão do interior.
As estatísticas confirmam aquilo que já se sente nas ruas das aldeias: segundo o Instituto Nacional de Estatística, entre 2011 e 2021, Portugal perdeu mais de 150 mil habitantes no interior do país. Os jovens, seduzidos pelas oportunidades das cidades, trocam a aldeia pela urbe. E com eles leva-se a música, a tradição e o pó de arroz das romarias.
Mas há uma geração que se recusa a ver as festas desaparecerem em silêncio. Em Carapito, no concelho de Aguiar da Beira (distrito da Guarda), a Comissão de Festas de Nossa Senhora da Conceição virou-se para o digital. Com o apoio de alunos do curso de Ciências da Comunicação da Universidade da Beira Interior, desenhou-se uma campanha nas redes sociais que misturava pímba remixado com coreografias inspiradas no TikTok. O vídeo promocional passou as 75 mil visualizações em três dias. Joana Rabaçal, 24 anos, natural de Trancoso e voluntária da comissão, não esconde o entusiasmo: "Nunca pensei ver tanta gente por cá. Vieram carrinhas de Viseu, da Guarda, e até um grupo de jovens de Benfica que descobriu o vídeo por acaso".
Mais a norte, em Ponte de Lima, a tradicional festa de São João também se adaptou aos novos tempos. A comissão local recorreu à plataforma portuguesa PPL (People Powered Logistics) para lançar uma campanha de crowdfunding. O objectivo era simples: garantir a contratação da banda Quim Roscas & Zeca Estacionâncio e o aluguer do sistema de som. Em duas semanas, arrecadaram 4.850 euros, ultrapassando o valor previsto. Manuel Faria, presidente da comissão, recorda: "Antigamente era ir casa a casa pedir um donativo. Hoje, com os filhos dos emigrantes ligados pelo Facebook, conseguimos apoio até de Toronto e Luxemburgo".
Mais a sul, no Alentejo profundo, Safira, uma pequena aldeia do concelho de Aljustrel, viu na conta de Instagram uma ferramenta de ressurreição cultural. Por lá passam memórias das festas dos anos 80, vídeos de danças ao som de Rebeca e desafios de culinária — como fazer empadas de galinha à moda antiga. Em 2024, registou-se o maior número de visitantes desde 1998: mais de 2.300 pessoas em três dias de festa, de acordo com dados da Junta de Freguesia. Rosa Palma, agricultora de 58 anos e membro da comissão, resume bem o impacto: "Vieram youtubers de Lisboa, patrocínios de uma marca de azeite de Serpa e até uma carrinha com cervejas artesanais do Algarve. Nunca se viu tal coisa cá".
A Cultura Não Se Herda: Cultiva-se
É no cruzamento entre resistência e inovação que nasce esta nova forma de celebrar. O principal desafio? A continuidade. Com a taxa de envelhecimento em zonas rurais a ultrapassar os 182% (PORDATA, 2023), muitas festas lutam contra o tempo. Mas a digitalização veio rejuvenescer o espírito e atrair novos protagonistas.
Pequenos produtores de Amarante, Belmonte ou Castro Verde relatam aumentos entre 20% e 60% nas vendas durante festas promovidas nas redes. Compotas, vinhos caseiros, bordados e cerâmica ganham visibilidade através de marketspaces informais geridos por comissões ou associações locais. "Nunca pensei que os meus tapetes de Arraiolos fossem enviados para a Holanda graças a uma story", conta Amélia Duarte, artesã de Estremoz.
O Instituto Politécnico de Bragança tem actualmente em curso o projecto “Festa Viva”, em parceria com a Direcção-Geral das Artes, que estuda o impacto das ferramentas digitais na revitalização cultural. Os primeiros relatórios indicam um crescimento de até 300% no alcance de eventos em zonas com menos de 2.000 habitantes.
O exemplo de Portugal pode ser pioneiro na União Europeia, segundo investigadores da Universidade do Minho. É possível modernizar sem descaracterizar. Dar palco às tradições sem lhes tirar a alma. Com um telemóvel na mão, uma ideia bem gizada e um pingo de orgulho na terra, a cultura popular portuguesa pode muito bem continuar a dançar, mesmo que agora o ritmo venha com filtros e hashtags.