Compromisso a prazo ganha terreno
Em Guimarães, à chegada de uma tarde fria de fevereiro de 2025, Rita Marques e Luís Teixeira trocaram votos no Registo Civil local… mas não para toda a vida. O contrato matrimonial que assinaram estipula cinco anos de união — renováveis por comum acordo — e foi celebrado com festa, no Solar dos Pinheiros, onde 60 familiares e amigos levantaram o copo à vossa “hora de validade”. “Sentimo-nos mais livres para crescer em conjunto, sem a pressão de um ‘até que a morte nos separe’ que, para muitos, já não faz sentido”, confidencia Rita, engenheira de software de 31 anos, natural de Vizela. Luís, 34 anos, gestor numa startup de Braga, acrescenta: “É algum tipo de seguro emocional — e damos-nos a hipótese de repensar o percurso antes que esta relação fique agarrada pela inércia.”
Em Lisboa, a caminho do Chiado, Catarina Rocha e Miguel Santos optaram por um contrato semelhante em abril, com cláusulas que preveem mediadores familiares e avaliação económica no 4.º ano de casamento. Catarina, investigadora no Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações (Universidade do Algarve), refere que a ideia surgiu no grupo de trabalho do “Projeto Família 2030”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT): “Discutíamos as falhas do Código Civil em proteger casais modernos. Foi daí que nasceu a expressão ‘união renovável’.” Miguel, natural de Tavira, confessa um sorriso: “É quase como subscrever um plano de seguro: renovas se estiver a resultar, caso contrário cada um segue o seu caminho sem entrar em batalhas judiciais.”
Segundo dados preliminares do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2024 registaram-se 34 800 casamentos civis, mas o número de acordos pré-nupciais — até aqui raros — cresceu 120 % face a 2022. E, se só 2 % dos casais em 2019 recorreu a convenções antenupciais, em 2025 esse valor já supera os 5 % nas capitais de distrito (Lisboa, Porto, Braga e Faro). É uma revolução silenciosa que aponta para novo conceito de matrimónio: menos “eterno”, mais “adaptável”.
Descompasso legal e riscos à vista
Mas o entusiasmo esbarra nos braços do Código Civil. O artigo 1578.º, ainda inalterado, define o casamento como “união estabelecida para toda a vida” e não contempla prazos ou cláusulas de dissolução automática. Em nome do princípio da ordem pública, Carolina Silva, do gabinete Silva & Sousa (Porto), alerta para perigos reais: “Um contrato que estipule data de caducidade pode ser declarado nulo. Basta invocarem o vício de ilegalidade — e aí arriscam-se a litigâncias caras, sobretudo no que toca à partilha de bens e ao regime de pensões de alimentos.”
Mais dramático é o caso de um casal de Barcelos que, acreditando na renovação tácita do contrato a termo, terminou a relação sem pedir divórcio formal. Quando, em março, decidiram pôr fim ao matrimónio, viram o pacto considerado inexequível e acabaram por suportar custas judiciais de mais de 3 500 € em honorários e taxas de tribunal. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa há, desde abril de 2025, cinco processos a questionarem a validade destas cláusulas, incluindo dois envolvendo militares reformados de Beja que assinaram acordos de três anos por receio de instabilidade familiar.
A Direção-Geral da Política de Justiça lançou, em junho de 2024, uma consulta pública para avaliar possíveis alterações ao regime de separação de bens e convenções antenupciais, mas ainda não há calendário definido para proposta de lei. O grupo de trabalho inclui representantes da Ordem dos Advogados, da Associação Portuguesa de Direito da Família e Menores (APDFM) e do Observatório das Famílias da Universidade Católica Portuguesa. Mesmo assim, persiste a incerteza: sem uma reforma legislativa profunda, estes contratos de “união temporária” continuarão a navegar em águas pantanosas.
O olhar dos especialistas
No Congresso de Direito da Família 2025, que decorreu na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra entre 3 e 5 de julho, o professor José Manuel Mendes destacou que “esta tendência reflete uma desconfiança crescente nas instituições formais” e defendeu um regime jurídico próprio: “Precisamos de regras claras sobre renovação, direitos dos filhos e eventual pensão compensatória — caso contrário, corremos o risco de criar relações de segunda classe, sem proteção adequada.”
Já em Lisboa, a conferência do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Universidade Nova reuniu juristas como a doutora Ana Sofia Pinto para discutir práticas predatórias: “Algumas entidades promovem ‘kits de casamento a termo’ online, cobrando 800 € por contrato, sem garantias de validade jurídica. É fundamental intervir para proteger os casais mais vulneráveis.” A APDFM divulgou, em maio, um estudo que concluiu que 62 % dos advogados de família se mostram contrários a contratos com prazo — enquanto 28 % acreditam que a figura poderia existir, mas “apenas sob condições estritas”.
No Porto, Helena Patrício, investigadora da Católica Porto School of Law, alerta para o poder de influência das seguradoras e dos serviços de mediação: “Estamos perante um fenómeno híbrido: nem seguro, nem casamento tradicional. Se não clarificarmos o estatuto destes contratos, teremos dezenas de milhares de relacionamentos à mercê de conflitos, sem amparo jurídico nem redes de apoio.”
Urgência de repensar o matrimónio
A verdade é que as motivações não faltam: em 2023, o INE registou 17 900 divórcios, cifra que representa um aumento de 4 % face a 2022. A idade média de casamento situa-se nos 34,5 anos para os homens e 32,3 para as mulheres — estatísticas que revelam uma geração cada vez mais tardia e cautelosa. Por outro lado, um estudo da COTEC Portugal concluiu que 48 % dos jovens inquiridos receiam o peso financeiro do divórcio e apenas 15 % confiam na estabilidade de uma união formal sem contra-garantia.
Enquanto em França decorre o projeto-piloto “Union à Durée Déterminée” e no Québec se debate a “union civile renouvelable”, Portugal mantém o matrimónio preso a conceitos do século XIX. Apesar da tradição católica ainda influenciar 76 % da população (segundo o Eurobarómetro de 2022), 55 % dos casais entre os 25 e os 40 anos admitem preferir formas alternativas de união. É aqui que reside a urgência: adaptar o Código Civil não é apenas modernizar leis, é prevenir conflitos, proteger menores e promover relações mais saudáveis.
É crucial que o Parlamento, por iniciativa da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, abra rapidamente um debate público. O Observatório das Famílias sugere que qualquer novo regime inclua:
Cláusulas de renovação automática com prazos-limite máximos;
Garantias mínimas para cônjuges e filhos, semelhantes às proteções do divórcio convencional;
Mediação obrigatória antes de dissolução automática;
Transparência de custos e fiscalização de entidades que comercializam estes contratos.
Portugal não pode ficar refém de soluções legais à margem. Perante o novo rosto das uniões — marcado pela busca de autonomia, flexibilidade e segurança emocional —, urge construir pontes entre o afeto e o direito, evitando que cada “casamento a prazo” se transforme numa armadilha burocrática. E, acima de tudo, reconhecer que o matrimónio continua a ser um pilar social, mas que precisa de leis à altura dos desafios do século XXI.