Há quem diga que o futuro da habitação em Portugal pode estar debaixo dos nossos pés — literalmente. Num país onde os verões são cada vez mais quentes e os invernos mais instáveis, um número crescente de arquitectos, engenheiros e autarcas está a virar-se para práticas ancestrais como a taipa e o adobe, técnicas de construção com terra crua que, apesar de antigas, oferecem respostas muito actuais.
Nos campos ondulados do Alentejo, entre oliveiras e sobreiros, não é raro encontrar casas centenárias erguidas em taipa — paredes largas, respiráveis, que regulam a temperatura interior sem recurso a sistemas mecânicos. Esta técnica, que caiu em desuso nas décadas pós-industriais, está agora a regressar com força. O arquitecto Alexandre Bastos, natural de Odemira, é um dos nomes que mais se destacam nesta nova vaga. No Mercado Municipal de São Luís, Bastos coordenou uma intervenção exemplar: uma estrutura moderna construída em taipa estabilizada, com um impacto ambiental quase nulo. O edifício tornou-se referência nacional e já atrai visitas de universidades e investigadores do estrangeiro.
Já mais a norte, em Ílhavo, os blocos de adobe — feitos com terra local, moldados manualmente e secos ao sol — foram durante séculos o material de eleição. Em bairros como o Gafanha de Aquém, ainda se encontram habitações com mais de 150 anos totalmente erguidas com esta técnica. A investigadora Ana Rita Moreira, do Departamento de Engenharia Civil da Universidade de Aveiro, lidera actualmente um estudo que visa catalogar e preservar estas construções, muitas das quais correm risco de desaparecer com o avanço da urbanização.
Segundo dados da Direcção-Geral do Património Cultural, estima-se que existam em Portugal mais de 30 mil edifícios antigos parcialmente construídos em terra. No entanto, apenas uma fracção está inventariada ou protegida. Esta ausência de registo é sintomática do desinteresse histórico por este património — um desinteresse que felizmente começa a ser revertido.
Empresas como a Visionarte, sediada em Évora, têm sido pioneiras na formação de mão de obra especializada em taipa e adobe. Através de parcerias com câmaras municipais, centros de formação profissional e universidades, a Visionarte tem promovido workshops em zonas como Reguengos de Monsaraz, Elvas e Marvão. Em 2023, mais de 400 pessoas participaram nas formações, e muitos dos projectos locais estão já a incorporar estas técnicas com sucesso.
Mas nem tudo são facilidades. Os construtores enfrentam ainda barreiras regulamentares. A legislação portuguesa, moldada para a construção em betão e alvenaria convencional, nem sempre contempla soluções tradicionais. A arquiteta Maria Carvalho, que lidera um projecto de habitação social em taipa em Ferreira do Alentejo, afirma que "as licenças demoram mais, os pareceres são mais exigentes, e muitas vezes os técnicos camarários não sabem como avaliar este tipo de construção".
Ainda assim, os benefícios falam por si. Casas de terra consomem até 60% menos energia para climatização, segundo estudo publicado pelo Instituto Superior Técnico. Em tempos de crise climática e inflação energética, estas soluções não só são viáveis — como urgentes.
O que antes era visto como coisa de gente pobre ou de um passado ultrapassado, ganha hoje estatuto de vanguarda ecológica. A terra, afinal, está a voltar ao lugar que lhe pertence: o centro da arquitectura portuguesa — não por saudosismo, mas por necessidade urgente de adaptação.
É tempo de olhar para o chão que pisamos com olhos de futuro.