A geografia da ausência
Portugal, terra de vales verdes, mar revoltoso e saudade entranhada no peito, está a viver um fenómeno silencioso mas devastador: a solidão crónica. Este não é um problema exclusivo das grandes cidades, onde vizinhos raramente se cumprimentam no elevador. A solidão tem rosto, voz e morada nas aldeias, vilas e serras onde o tempo passa mais devagar e o mundo parece ter esquecido quem lá ficou.
Em Chãos (Sertã), Dáspera (Idanha-a-Nova) ou Sendim da Ribeira (Alfândega da Fé), há ruas inteiras sem uma luz acesa à noite. Os moradores dizem que não ouvem uma gargalhada de criança há mais de uma década. E quando uma ambulância passa, não se ouvem suspiros de esperança, mas sim o reconhecimento de mais uma partida definitiva.
Um estudo recente do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em colaboração com a Rede Europeia de Combate à Solidão, identificou 42 freguesias em risco de isolamento crónico. Em freguesias como Lajeosa do Dão (Tondela) e Ervedosa (Vila Real), mais de metade da população tem mais de 75 anos e vive sozinha. Sem transporte regular, sem farmácias por perto e com os filhos a viver em Lisboa, no Porto ou emigrados, resta-lhes a companhia do televisor e do tempo.
Em São Martinho das Amoreiras (Odemira), Joana Sampaio, de 81 anos, diz-nos: “A minha casa está cheia de fotografias. São os meus netos. Falo com elas todos os dias. Mas não respondem...”. Joana vive a 17 quilómetros do posto de saúde mais próximo e depende da carrinha da junta que, quando há voluntários, passa às quartas-feiras.
Quando os números se tornam rostos
Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) são claros: em 2022, 987 mil portugueses viviam sós. Destes, 321 mil tinham mais de 65 anos. No entanto, os especialistas alertam que a verdadeira dimensão da solidão é invisível aos censos. Há milhares de portugueses que, apesar de viverem com família, estão emocionalmente isolados, sem escuta, sem contacto afectivo, sem toque.
Ana Rita Teixeira, socóloga na Universidade do Minho, salienta: “Vivemos num país que enaltece a família como pilar, mas esquece os que ficam para trás. A solidão não é só uma questão de presença física, é de ausência afectiva”.
A Cruz Vermelha Portuguesa registou em 2023 um aumento de 78% nas chamadas para a Linha da Pessoa Idosa, com mais de 42 mil pedidos de ajuda emocional, sobretudo vindos de zonas como Trás-os-Montes, Beira Baixa e Alto Alentejo. Muitos relatos referem estados de depressão leve, ansiedade, mas também casos de tentativas de suicídio silenciosas.
Projectos que fazem a diferença
Há luzes que se acendem em meio à penumbra. Em Méda, no distrito da Guarda, nasceu o projecto “Vizinho Amigo”, onde estudantes do ensino secundário recebem formação em escuta activa e visitam idosos semanalmente. Em 2023, este projecto evitou a institucionalização de 28 idosos e devolveu sentido a jovens como Cláudia Santos, de 17 anos, que diz: “A D. Emília é como uma avó emprestada. Ensinou-me a fazer arroz-doce como deve ser”.
Almodôvar apostou no Centro de Escuta Telefónica, onde mais de 60 voluntários oferecem companhia por telefone a pessoas em solidão. O município investiu 38 mil euros na formação, equipamentos e logística. O retorno? Uma comunidade mais unida, menos silenciosa.
Na ilha do Pico, nos Açores, o programa "Caminho para Dois" criou parcerias entre agricultores idosos e jovens que desejam aprender a trabalhar a terra. A solidão cedeu espaço ao companheirismo e ao saber partilhado.
Solidão estrutural: um Estado ausente?
O Professor Francisco Baptista, demógrafo da Universidade Nova, é peremptório: “Temos aldeias onde o Estado já não está. Sem médico, sem transportes, sem correio. Os serviços saíram e levaram consigo a dignidade do lugar”. A falta de estratégias nacionais articuladas entre Ministérios da Saúde, Coesão Territorial e Administração Interna torna as soluções locais insuficientes.
O Plano de Ação para o Envelhecimento Activo e Saudável 2021-2030, promovido pela Direcção-Geral da Saúde, propõe medidas concretas, como habitação colaborativa e requalificação de equipamentos sociais. Contudo, a execução tem sido lenta, e os recursos, escassos. Dos 90 milhões de euros previstos para a primeira fase, apenas 27% foram utilizados até ao fim de 2023.
O que fazer: ideias com pés assentes na terra
Não se trata apenas de assistir aos que estão sós. É urgente criar redes comunitárias que previnam o isolamento. Propostas como autocarros comunitários semanais, cafés sociais intergeracionais, hortas comunitárias e habitações com zonas comuns podem ajudar a reatar laços perdidos.
A aposta na telemedicina, com profissionais de saúde a prestarem apoio através de videochamada, começa a dar os primeiros passos em Viseu, onde a Unidade de Cuidados na Comunidade do Agrupamento de Centros de Saúde criou uma equipa mista que já acompanha 120 utentes com recurso a tablets doados por uma fundação local.
A cultura também pode ser parte da solução. O Teatro Regional da Serra do Montemuro realiza peças de teatro nas aldeias, com participação dos próprios moradores, num misto de representação e terapia social.
Conclusão: a urgência de se ver o invisível
Portugal está a envelhecer rápido e a isolar-se ainda mais depressa. Se não nos apercebermos da magnitude da solidão agora, em poucos anos o país que conhecemos como de afectos e proximidade poderá transformar-se num arquipélago de silêncios.
Como afirma Maria do Carmo Vieira, da ONG "Rede Cuidar": “Não se trata de compaixão. Trata-se de justiça social. Cuidar de quem está só é cuidar do que somos enquanto povo”.