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Deixaram Tudo Para Trás: O Preço Que Ninguém Vê de Cuidar dos Pais em Portugal

Sem apoio do Estado, milhares de portugueses sacrificam carreiras, vida pessoal e saúde mental para cuidar de familiares dependentes. Uma realidade silenciada que atravessa o país de norte a sul.

Mariana Duarte Coelho Mariana Duarte Coelho Jornalista de Viagens, Lifestyle, Entretenimento e Esportes | Porttugal
8 Minutos
2025-05-17 11:36:00
Deixaram Tudo Para Trás: O Preço Que Ninguém Vê de Cuidar dos Pais em Portugal

Cuidar em Silêncio: A Invisibilização Sistémica dos Cuidadores Informais em Portugal

Mangualde, no interior do distrito de Viseu, representa, por ventura, um dos muitos microcosmos onde se desenrola, sem holofotes mediáticos, a realidade dos cuidadores informais. Maria da Conceição Alves, 54 anos, licenciada em Línguas e ex-docente de Inglês, abdicou da sua trajetória profissional para assegurar, em tempo integral, a assistência ao pai, Manuel Alves, de 87 anos, portador de doença de Alzheimer em fase avançada. O testemunho de Maria, impregnado de exaustão e silêncio, torna-se paradigmático da crise de suporte estrutural que se abate sobre quem cuida sem rede.

Este fenómeno, embora transversal ao território nacional, permanece enraizado num manto de invisibilidade. Estima-se, de acordo com dados da Direção-Geral da Saúde, que existam mais de 800 mil cuidadores informais em Portugal, sendo que aproximadamente 85% são mulheres, maioritariamente acima dos 45 anos, muitas das quais em situação de vulnerabilidade económica. Estas mulheres, na sua maioria, renunciam a carreiras, projetos pessoais e, por vezes, à própria identidade enquanto sujeitos autónomos, para garantir cuidados que, em sociedades mais equitativas, estariam sob responsabilidade partilhada com o Estado.

Trata-se de um fenómeno com múltiplas implicações sociais e políticas. A concentração da carga de cuidado nos lares evidencia a fragilidade da resposta pública em matéria de cuidados continuados e acentua a desigualdade de género, já que são sobretudo mulheres que assumem a função não remunerada de cuidadoras. Exemplos como o de Filipa Leal, que interrompeu um mestrado em Psicologia em Vila Real, ou de José Lopes, comerciante que encerrou o seu negócio familiar em Aljezur, tornam visível a erosão de direitos que afeta quem cuida.

Entre o direito consagrado e a ausência de políticas públicas eficazes

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A promulgação da Lei n.º 100/2019, que institui o Estatuto do Cuidador Informal, constituiu um passo relevante na consagração simbólica do direito ao cuidado e ao reconhecimento dos cuidadores. No entanto, a sua implementação tem-se revelado profundamente deficiente. Os projetos-piloto, confinados a concelhos como Matosinhos, Coimbra ou Odemira, carecem de financiamento consistente, fiscalização rigorosa e articulação entre entidades locais e nacionais.

Em Beja, João Ferreira, cuidador da mãe com patologia oncológica crónica, relata o percurso kafkiano da sua tentativa de aceder ao apoio previsto na legislação. "Apresentar candidaturas foi mais complexo do que solicitar um empréstimo bancário", afirma. Em Castelo Branco, Maria do Rosário, septuagenária que acompanha o marido com demência vascular, aguarda há mais de um ano por resposta definitiva da Segurança Social.

A carência de recursos humanos nos serviços locais, a complexidade processual e a inexistência de equipas multidisciplinares de apoio resultam numa resposta negligente que perpetua o sofrimento físico, psicológico e financeiro dos cuidadores.

Uma crise de saúde pública por reconhecer

O impacto psicossocial do cuidar é já documentado por diversos estudos académicos. A investigação conjunta da Universidade do Minho e do CESIS (2023) revela que 64% dos cuidadores informais experienciam ansiedade crónica, sendo que 39% apresentam sintomatologia compatível com estados depressivos severos. O isolamento, a ausência de tempo pessoal, a privação de descanso e o sentimento de sobrecarga são constantes entre os relatos.

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Casos como o de Paula Mendes, residente em Monção, que cuida da irmã com paralisia cerebral com um rendimento mensal inferior a 300 euros, ilustram a desproteção crónica destas populações. A ausência de redes formais de apoio — como serviços de substituição temporária (respiro), cuidados paliativos domiciliários ou apoio psicológico estruturado — agrava a situação. A linha SOS Cuidador, coordenada pela Associação Nacional de Cuidadores Informais, registou mais de 3.100 chamadas em 2024, maioritariamente provenientes de cuidadores em colapso emocional.

A presidente da associação, Joana Loureiro, alerta para um aumento exponencial de casos de exaustão, ideação suicida e abandono involuntário do papel de cuidador, sobretudo em regiões como o Baixo Alentejo e o interior norte. O relato de cuidadores que se veem forçados a internar familiares por incapacidade financeira ou física de manter os cuidados em casa é cada vez mais comum.

Referenciais internacionais e ausência de vontade política

Modelos adotados por países escandinavos, como o dinamarquês “respiro familiar” (aflastningspladser), onde o Estado assegura dias de descanso ao cuidador mediante intervenção de profissionais de saúde, demonstram eficácia comprovada na redução de burnout e na melhoria da saúde mental dos cuidadores. Em Portugal, propostas semelhantes têm sido sistematicamente rejeitadas em sede parlamentar, com justificação centrada em limitações orçamentais.

A Ordem dos Psicólogos, em parecer emitido no final de 2023, recomendou a criação urgente de Gabinetes de Apoio ao Cuidador nos centros de saúde, integrando psicólogos, assistentes sociais e técnicos de geriatria. O psicólogo clínico Jorge Graça, do Hospital de Santa Maria, adverte que “não reconhecer o cuidador como utente prioritário é perpetuar uma lógica assistencialista que ignora a complexidade da função que desempenham”.

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O projeto “Cuidar +”, promovido pelo ISCSP em Lisboa, constitui uma experiência-piloto com resultados promissores, oferecendo sessões de capacitação, grupos de entreajuda e aconselhamento jurídico. Contudo, segundo Helena Moreira, assistente social envolvida no projeto, a ausência de financiamento a médio prazo compromete a continuidade e replicação da iniciativa noutros territórios.

Envelhecimento demográfico e responsabilidade social

O Instituto Nacional de Estatística prevê que, até 2050, um terço da população portuguesa terá mais de 65 anos. O aumento exponencial da dependência funcional e cognitiva implicará uma reformulação urgente das políticas de cuidado em Portugal. A manutenção da atual lógica de privatização doméstica do cuidado — onde a família, e sobretudo as mulheres, suportam a maior parte dos encargos — configura uma violação tácita dos direitos sociais fundamentais.

Henrique Fonseca, sociólogo da Universidade de Évora, sustenta que “a sociedade portuguesa está a delegar no amor aquilo que deveria ser assegurado pela justiça social”. Esta sobrecarga moral, ainda que nobre no plano afetivo, converte-se em sacrifício estrutural quando não amparada por políticas públicas adequadas.

Por entre os becos de bairros periféricos, os campos despovoados do Alentejo e os centros históricos desertificados do norte, persistem histórias de resistência silenciosa. Cuidadores que, na ausência do Estado, reinventam todos os dias a dignidade do outro. Mas a solidariedade individual, por mais heroica que seja, não deve substituir o dever institucional.

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