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Portugueses Que Optaram Por Andar Sem Telemóveis: Uma Ousadia Contra a Maré Digital

Em plena era digital, há portugueses que abdicaram voluntariamente do telemóvel. Não se trata de pobreza ou atraso, mas de uma escolha consciente e radical de liberdade.

Mariana Duarte Coelho Mariana Duarte Coelho Jornalista de Viagens, Lifestyle, Entretenimento e Esportes | Porttugal
5 Minutos
2025-05-20 18:09:00
Portugueses Que Optaram Por Andar Sem Telemóveis: Uma Ousadia Contra a Maré Digital

Contra a corrente: o direito a desligar

Em pleno séc. XXI, onde a norma é acordar com notificações e adormecer ao som do vibrar dos smartphones, há quem em Portugal esteja a remar, com convicção e firmeza, contra esta corrente digital que não dá tréguas. É uma minoria, é certo, mas uma que levanta questões profundas: será que o direito a desligar não deveria ser tão fundamental como o de estar conectado?

João Cunha, 38 anos, professor de Filosofia no Agrupamento de Escolas Francisco de Holanda, em Guimarães, fez da sua renúncia ao telemóvel um manifesto silencioso. "Sentia-me prisioneiro de um objecto que me roubava minutos, horas, dias... a cada notificação, era como se me arrancassem de mim próprio". Em 2018, desligou de vez. Hoje, quem quer falar com ele tem de enviar uma carta, telefonar para o fixo ou marcar uma conversa presencial. "Redescobri o espaço do pensamento. E do silêncio."

Em localidades como Vilarinho de Negrões, no concelho de Montalegre, a realidade é ainda mais peculiar. Maria Clara Soares, 76 anos, nunca teve telemóvel. "Não me faz falta. Tenho os meus vizinhos e, se há urgência, o padre ou o carteiro dãm conta." A vida ali continua a um ritmo ancestral, onde a palavra dada ainda conta, e a porta aberta à rua continua a ser canal de comunicação.

Estudos como o promovido em 2023 pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa revelam que cerca de 2% da população portuguesa adulta vive sem telemóvel — por exclusão digital, opção ideológica ou simples desinteresse. Mas é em contextos urbanos que o gesto adquire contornos mais simbólicos e provocatórios.

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Leonor Diniz, 29 anos, investigadora em Neurociência Cognitiva na Universidade Nova de Lisboa, conta que a decisão de trocar o smartphone por um antigo Nokia com botões mudou-lhe a vida: "Comecei por precisar de foco para escrever a tese. Acabei por ganhar paz". Leonor faz parte do pequeno grupo de jóvens portugueses a aderir ao chamado "minimalismo digital" — um movimento que se está a espalhar discretamente pelas universidades e centros urbanos, como Coimbra, Braga e Porto. É um movimento que não rejeita a tecnologia, mas questiona o seu uso desmedido, propondo limites e consciencialização.

Em Aveiro, o grupo "Vida Lenta" junta semanalmente pessoas que se propõem a partilhar experiências de redução digital. Criado em 2021 por Catarina Reis, psicóloga clínica, o grupo já conta com mais de 200 participantes regulares. “A ideia é voltarmos a estar presentes, com tempo para ouvir e sermos ouvidos, sem um ecrã no meio”, explica.

A vida offline não é um retrocesso: é resistência consciente

António Moreira, sociólogo e investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, contextualiza o fenómeno: "Estamos perante uma reacção à hiperconectividade. A dependência digital já é classificada pela Organização Mundial da Saúde como um risco emergente para a saúde mental."

E os dados confirmam. Um estudo da Direcção-Geral da Saúde publicado em 2022 apontava que 35% dos jovens entre os 16 e os 24 anos relatavam sintomas associados a burnout digital, enquanto 22% admitiam sentir ansiedade se estivessem mais de uma hora sem acesso ao telemóvel. Esta "fome de rede" está a produzir efeitos ainda não totalmente compreendidos. O mesmo estudo indica que 47% dos inquiridos entre os 25 e os 34 anos admitem perder produtividade no trabalho devido a distracções constantes com mensagens e redes sociais.

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Na Serra de S. Mamede, em Portalegre, José Ramos, apicultor de 54 anos, vive com o essencial. "Não preciso do telemóvel para tratar das minhas abelhas. Aqui o tempo não corre ao ritmo do 4G. E se precisar, tenho um radioamador e o vizinho ao lado." José organiza mensalmente pequenos encontros de produtores locais que, como ele, optaram por meios de comunicação mais tradicionais.

Em Ferreira do Zêzere, a Câmara Municipal promove desde 2020 o programa "Offline em Férias", que incentiva crianças e jovens a passarem uma semana sem dispositivos digitais. Segundo Ana Salgueiro, coordenadora do projecto, "tem havido resistência inicial, mas no fim há um alívio genuíno. Muitos querem repetir."

Já em Arcos de Valdevez, o centro cultural Porta XIII lançou uma residência artística intitulada "Tempo Desligado", onde os criadores são convidados a produzir sem recurso a internet ou tecnologias digitais. O resultado tem sido surpreendente, com obras mais introspectivas, contemplativas e densas.

Um alerta para o futuro da autonomia humana

Num país onde, segundo o INE, existiam 11,2 milhões de telemóveis activos em 2022 para uma população de cerca de 10,2 milhões, a ideia de prescindir deste dispositivo não é apenas contra-cultural — é quase subversiva. Mas talvez resida aqui o verdadeiro gesto revolucionário: recusar a imposição de uma presença digital constante.

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A ausência de telemóvel não é sinónimo de ignorância, mas de escolha. De liberdade. De um grito surdo contra a tirania da distração. Estes "desligados" lembram-nos que, por vezes, para nos reencontrarmos, basta desconectar.

O Observatório Nacional para a Sobriedade Tecnológica (criado em 2023 em parceria com a Universidade de Évora e a Associação Portuguesa de Psicologia da Internet) tem vindo a alertar para o desequilíbrio crescente entre o tempo online e o tempo presencial. Segundo o seu primeiro relatório, lançado em Janeiro de 2024, Portugal está entre os cinco países europeus com maior tempo médio de ecrã por dia: cerca de 9h02m por utilizador.

Nestes contextos, quem se recusa a participar do ciclo não está apenas a desconectar-se: está a lembrar-nos de uma dimensão essencialmente humana. Aquela que nos chama à presença plena, ao olhar atento, à conversa descompassada pelo tempo. Desligar, afinal, pode ser o maior acto de coragem contemporâneo.