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Os Últimos Cauteleiros: Uma profissão em extinção Que Resiste nas ruas Portuguesas

Entre a nostalgia dos bilhetes de lotaria e a modernidade digital, os cauteleiros sobrevivem ao esquecimento social e institucional numa luta silenciosa pelas ruas do país.

Mariana Duarte Coelho Mariana Duarte Coelho Jornalista de Viagens, Lifestyle, Entretenimento e Esportes | Porttugal
8 Minutos
2025-05-20 10:09:00
Os Últimos Cauteleiros: Uma profissão em extinção Que Resiste nas ruas Portuguesas

O cauteleiro que não quis desaparecer

Ainda se ouve, de forma cada vez mais espaçada, aquele timbre rouco e arrastado que atravessava as praças portuguesas como o sino da igreja ao domingo: “É hoje a sua sorte, compre aqui a cautela!”. Em Vila Franca de Xira, junto à Estância dos Correios, resiste Manuel Correia, 74 anos, um dos últimos cauteleiros em actividade. Com o boné de pala gasto, a pasta de cabedal e os passos certos que conhece desde a adolescência, Manuel é mais do que um vendedor ambulante: é um arquivo vivo da vida urbana de outros tempos.

“Comecei com 16 anos, ainda no tempo em que a Baixa de Lisboa fervilhava de gente e de sonho. O meu pai era cauteleiro na Rua dos Fanqueiros, e eu fui atrás. Não havia dia em que não se vendessem dezenas de bilhetes”, recorda, encostado à parede onde hoje se anuncia um balcão digital da EDP. "Hoje, somos menos de trinta a trabalhar a tempo inteiro em todo o país."

Em 1990, segundo dados da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, existiam cerca de 4.200 cauteleiros registados em Portugal. Hoje, esse número caiu a pique. Estimativas actualizadas de 2023 apontam para cerca de 50 profissionais com licença activa, dos quais menos de metade ainda percorre as ruas com regularidade. A erosão é clara.

Com o avanço das plataformas digitais, a venda online de lotarias e raspadinhas e a crescente presença de terminais automáticos em quiosques e cafetarias, a função do cauteleiro foi sendo empurrada para o esquecimento. E com ela, parte do tecido social que ajudava a tecer os laços de vizinhança.

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Maria Antónia Gouveia, de 68 anos, percorre ainda hoje as ruas entre Setúbal e Palmela. Com uma voz serena mas firme, descreve as transformações: "Antes, as pessoas esperavam por mim. Tinham o troco contado e queriam saber das novidades. Agora, confundem-nos com pedintes. Já fui insultada por estar parada na rua com a pasta."

A memória de um país que se apaga com cada passo

Não era apenas a sorte que os cauteleiros vendiam. Vendiam tempo. Conversa. Escuta. Eram o que hoje se chamaria “facilitadores comunitários”, embora ninguém usasse tais palavras. Eram, pura e simplesmente, do povo e para o povo.

Na Rua Direita, em Bragança, encontramos Armando Pires, com 82 anos, figura icônica e reconhecida por todos no centro histórico. "Nunca ganhei o primeiro prémio, mas dei vários segundos e terceiros", diz com orgulho. "O que mais me custa é que ninguém está a guardar estas histórias."

O grupo de Antropologia da Universidade de Coimbra reconheceu essa urgência. Desde 2022, vários alunos têm recolhido depoimentos de cauteleiros no âmbito do projecto Memórias Ambulantes, que visa preservar a história oral de profissões em risco de extinção. Inês Ramos, uma das coordenadoras, explica: “O que nos impressionou foi a dimensão humana destas pessoas. Cada cauteleiro é um contador de histórias, um sobrevivente e um elo com o passado urbano de Portugal.”

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Apesar disso, poucas câmaras municipais prestaram apoio. Em Lisboa, a autarquia tentou, em 2018, integrar os cauteleiros num projecto de registo simbólico, mas a iniciativa morreu na gaveta. No Porto, a proposta de criar uma rota turística que incluísse profissões tradicionais não teve seguimento por falta de verba.

A Santa Casa da Misericórdia, responsável pelos jogos sociais do Estado, declara ter mecanismos de integração dos cauteleiros em pontos de venda fixos, como papelarias ou quiosques. No entanto, fontes ouvidas pelo Deep Report News afirmam que estes processos são "burocraticamente desgastantes" e, muitas vezes, "inviáveis para quem não domina a informática ou vive com pensões de 300 euros".

Resistir é um acto político

A existência dos cauteleiros é mais do que uma anedota nostálgica. É uma manifestação clara do desinteresse crescente pelas relações humanas informais nas cidades. No tempo das apps, da pressa e do distanciamento digital, a figura do cauteleiro é quase subversiva.

“Resistimos porque fazemos falta. Não vendemos apenas papel. Vendemos conversa, memória, uma ligação que se perdeu”, resume Maria Antónia. A sua filha, Filipa, de 32 anos, que trabalha num call center em Almada, partilha do sentimento: "A minha mãe conhece metade da cidade pelo nome. Isso vale mais do que o saldo do multibanco."

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Dados do INE revelam que cerca de 18% da população portuguesa com mais de 65 anos vive em situação de isolamento social. Os cauteleiros, embora silenciosos, sempre funcionaram como ponto de contacto para esses portugueses esquecidos nas varandas e praças.

Na vila de Serpa, Alentejo, um projecto-piloto lançado pela Associação Terras Dentro está a tentar recuperar as profissões itinerantes como forma de dinamização social. “Queremos trazer de volta figuras como o leiteiro, o cauteleiro ou o amolador, agora com uma função social clara: combater a solidão e promover o diálogo intergeracional”, diz Rui Canhoto, responsável pelo projecto.

O que se perde com o desaparecimento dos cauteleiros não é apenas uma actividade comercial. Perde-se um pedaço da alma das cidades. Perde-se uma escuta sem pressa, uma rotina sem ecrãs, uma forma de sorte que não vinha com algoritmo.

Manuel gostava que o Museu do Aljube ou o Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, criassem uma exposição sobre os cauteleiros. "Antes de irmos todos embora. Antes que seja só mais uma fotografia a preto e branco."

Quando o último cauteleiro fechar a pasta e sair da rua, não desaparecerá apenas uma profissão. Desaparecerá também uma forma de estar, de ouvir, de encontrar o outro no espaço público. Num mundo que grita por conexões autênticas, talvez esteja na hora de escutarmos quem ainda chama: "É hoje a sua sorte!"

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