Alterações Climáticas e a Expansão da Resistência Antimicrobiana: Uma Preocupação Emergente na Saúde Global
As alterações climáticas estão a revelar-se um fator crítico na intensificação da resistência antimicrobiana (RAM), fenómeno que preocupa de forma crescente a comunidade científica e médica global. A RAM, caracterizada pela adaptação de microrganismos a antimicrobianos previamente eficazes, compromete o tratamento de infeções comuns e representa uma ameaça crescente à segurança sanitária mundial. Um estudo recente, publicado na revista Nature Medicine, demonstrou uma correlação entre o aquecimento global e o agravamento deste fenómeno, sugerindo que políticas ambientais ineficazes podem acelerar a emergência de superbactérias.
Esta ligação entre alterações climáticas e RAM não é apenas teórica. O aquecimento da temperatura média global, combinado com eventos extremos como inundações, secas e a degradação ambiental, tem impacto direto na ecologia microbiana e na disseminação de genes de resistência. Microrganismos como bactérias adaptam-se com rapidez a mudanças ambientais, e o aumento da temperatura pode intensificar a sua taxa de replicação, aumentando as oportunidades de mutação genética — base da resistência aos antimicrobianos.
Em termos epidemiológicos, os dados são alarmantes. Em 2021, estima-se que a RAM tenha causado 1,14 milhões de mortes a nível global, com maior prevalência em países de baixo e médio rendimento, onde o acesso a serviços básicos de saúde e saneamento é deficitário. Caso não se verifiquem mudanças estruturais significativas, projeta-se que este número possa atingir os dois milhões de mortes por ano até 2050, tornando a RAM uma das principais causas de mortalidade global, rivalizando com o cancro.
Clima e Resistência Bacteriana: Mecanismos de Interligação
O estudo referido baseia-se na análise de 32 milhões de isolados bacterianos recolhidos entre 1999 e 2022 em 101 países. Os cientistas focaram-se em seis dos patógenos prioritários definidos pela Organização Mundial da Saúde, utilizando modelos estatísticos para prever a evolução da resistência em diferentes cenários climáticos. Os resultados indicam que, num cenário de aumento de 4 °C a 5 °C na temperatura global até ao final do século, a RAM pode crescer 2,4% até 2050, mesmo com medidas convencionais de controlo em vigor.
Este crescimento, ainda que aparentemente moderado, representa um acréscimo expressivo no número absoluto de casos resistentes, dada a escala populacional envolvida. O impacto seria particularmente sentido em sistemas de saúde fragilizados, onde os recursos para diagnóstico e terapêutica são limitados. Além disso, alterações climáticas também afetam indiretamente a RAM ao comprometer o acesso à água potável, o saneamento básico e a segurança alimentar, elementos essenciais na prevenção de infeções e no controlo epidemiológico.
A RAM é, portanto, um fenómeno multifatorial que exige uma abordagem sistémica. A intensificação da agricultura industrial, o uso indiscriminado de antibióticos em animais de produção, as desigualdades no acesso à saúde, a urbanização desordenada e os movimentos migratórios provocados por eventos climáticos extremos são todos fatores que interagem de forma sinérgica com a crise da resistência antimicrobiana.
Contudo, o estudo também aponta caminhos promissores. A implementação de políticas públicas orientadas para o desenvolvimento sustentável — como o aumento da cobertura vacinal, investimentos robustos em infraestruturas de saúde e saneamento, e educação sanitária — poderá reduzir a prevalência da RAM em até 5,1%. Isto revela que há margem para mitigação, desde que exista vontade política e coordenação internacional.
Face à complexidade da relação entre alterações climáticas e RAM, a abordagem tradicional centrada apenas no uso racional de antibióticos revela-se insuficiente. É fundamental adotar o paradigma de "Uma Só Saúde" (One Health), que reconhece a interdependência entre saúde humana, animal e ambiental. Esta perspetiva exige articulação intersectorial entre ministérios da saúde, do ambiente, da agricultura e da educação, bem como parcerias com organismos internacionais e sociedade civil.
A Organização das Nações Unidas definiu como objetivo reduzir em 10% as mortes por RAM até 2030. Para tal, torna-se urgente integrar os determinantes ecológicos e sociais nas estratégias de prevenção e controlo. Esta integração passa, por exemplo, pelo reforço da vigilância epidemiológica, pela promoção da inovação farmacêutica e pela regulação mais apertada da utilização de antimicrobianos na agropecuária.
A formação académica de profissionais da saúde e da ciência deverá também refletir esta mudança de paradigma, incorporando conhecimentos sobre climatologia, ecologia microbiana, políticas de saúde pública e justiça social. Estudantes e investigadores universitários têm aqui um papel fundamental na construção de soluções baseadas em evidência, orientadas para a equidade e para a resiliência dos sistemas de saúde.
Em última análise, reconhecer que a RAM é exacerbada por fatores ambientais como as alterações climáticas permite-nos alargar o campo de intervenção e tornar mais eficazes as políticas de controlo. O desafio é global, interdisciplinar e urgente. A inação, neste contexto, é equivalente a abdicar do futuro da medicina moderna.