Em Portugal, não são raras as histórias de casas herdadas que acabam por ser deixadas ao abandono. De Norte a Sul, da Serra da Estrela à planície alentejana, são cada vez mais os imóveis que, por falta de acordo entre herdeiros, se degradam a olhos vistos. São telhados que colapsam, janelas emparedadas e memórias familiares encerradas entre paredes fendilhadas.
Na aldeia de Grijó de Parada, no concelho de Bragança, o senhor Manuel Lopes, de 72 anos, observa com tristeza a casa dos avós que está devoluta há mais de duas décadas. "Somos cinco primos e nunca conseguimos entender-nos sobre o que fazer. Ninguém quer gastar dinheiro, mas também ninguém abdica dela", conta. Este é apenas um exemplo de uma realidade que se estende por todo o território nacional.
Segundo dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, entre 2012 e 2021, pelo menos 300 imóveis reverteram para o Estado por inexistência de herdeiros ou repúdios formais da herança. Contudo, este número é apenas a superfície de um problema bem mais profundo: milhares de imóveis permanecem em estado de impasse legal e familiar, fora do radar das estatísticas.
A lei portuguesa define que, quando uma pessoa morre, os bens passam automaticamente para os seus herdeiros legais, ficando sob a responsabilidade de um representante: o chamado cabeça-de-casal. Trata-se, quase sempre, de um dos filhos ou do cônjuge sobrevivo. É ele quem deve zelar pelos bens até à partilha oficial. Mas quando há desentendimentos, ressentimentos antigos ou interesses divergentes, a gestão paralisa.
Maria da Conceição Figueira, advogada especialista em Direito Sucessório, afirma que "em mais de metade dos processos com que lidamos, os herdeiros optam por não regularizar a situação do imóvel por puro desacordo, ou por não quererem assumir encargos de manutenção, IMI ou renovação". Segundo a DECO PROTESTE, estima-se que mais de 12 mil imóveis urbanos estejam nesta situação de indefinição em Portugal continental.
Nem todas as heranças são bem-vindas. Em muitos casos, os bens herdados vêm acompanhados de dívidas fiscais, hipotecas ou obras urgentes. Nestes cenários, muitos optam pelo repúdio legal da herança. Em Santarém, por exemplo, um levantamento feito pela Câmara Municipal revelou que, em apenas três anos, houve 47 casos de repúdios formais de heranças apenas no centro histórico.
A Caixa Geral de Depósitos alerta para o crescente número de clientes que procuram aconselhamento jurídico sobre como rejeitar património. “O património imobiliário tem de ser gerido como um activo, mas para muitas famílias, está a tornar-se num passivo incontornável”, refere um gestor da instituição.
Nalguns casos, há herdeiros que vivem no imóvel durante anos a fio, sem que a partilha tenha sido formalizada. A lei permite, através do instituto da usucapião, que uma pessoa que possua um bem imóvel de forma pública, pacífica e ininterrupta durante mais de 15 anos possa pedir a sua legalização judicial como proprietário.
Joana Matos, jurista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, explica que "a usucapião é muitas vezes o único recurso prático quando os herdeiros estão desorganizados ou irredutíveis". No entanto, alerta para a morosidade e complexidade dos processos, que exigem testemunhas, registos de pagamentos e acção judicial.
O impacto deste fenómeno é visível sobretudo em territórios de baixa densidade. Em localidades como Redondo (Alentejo) ou Boticas (Trás-os-Montes), há casas devolutas mesmo ao lado da câmara municipal, que poderiam ser convertidas em habitação jovem, turismo rural ou residências seniores. Mas estão judicialmente bloqueadas.
O Movimento Terra de Todos, sediado em Viseu, tem promovido petições públicas para que o Governo crie um mecanismo especial de mediação familiar e fiscal, que facilite a regularização de heranças indivisas com fins habitacionais.
O Parlamento chegou a discutir, em 2019, uma proposta do PSD para permitir a alienação de bens indivisos por maioria de herdeiros. A medida não reuniu consenso, mas o debate expôs um problema estrutural que precisa de resposta.
Com o preço da habitação a atingir médias históricas (2.005€/m² em 2024, segundo o Idealista), não faz sentido manter milhares de casas ao abandono por entraves legais e emocionais. É imperativo que o Estado, os municipios e as famílias encontrem formas mais ágeis de resolver estes impasses e devolver vida ao património que, um dia, foi o lar de alguém.