Num país onde a chuva cai cada vez com menos regularidade e onde os verões se prolongam para além do que era costume, Portugal vê-se confrontado com um problema que atinge as suas raízes mais profundas: a escassez de água. Apesar de ainda sermos considerados um país com relativa abundância hídrica em comparação com outros territórios do sul europeu, a realidade está a mudar a olhos vistos. As nascentes, outrora fontes generosas e constantes, estão agora ameaçadas por um conjunto de pressões que vão desde as alterações climáticas à má gestão territorial, passando ainda pelo abandono rural e pela contaminação difusa.
Em resposta a esta ameaça silenciosa, são várias as comunidades que, um pouco por todo o país, decidiram tomar as rédeas da protecção das nascentes. Trata-se de um movimento espontâneo, de base local, mas que começa a ganhar reconhecimento e, acima de tudo, a fazer diferença lá onde o Estado não chega.
Comunidades em Ação
Subamos ao Parque Natural de Montesinho, em Bragança, onde a pequena aldeia de França, com pouco mais de 40 habitantes, guarda um tesouro escondido entre os carvalhais: a Fonte da Cerdeira. Há décadas que abastece os tanques de rega e as cisternas das casas, mas nos últimos anos a válvula de ferro permanece mais tempo fechada do que aberta. Manuel Pires, agricultor e antigo pastor, llvula de ferro permanece mais tempo fechada do que aberta. Manuel Pires, agricultor e antigo pastor, l\u00embra com saudade os tempos em que a água jorrava de forma constante: “Hoje já nem chega para regar a horta inteira. Temos de fazer turnos entre vizinhos”.
Em 2021, com o apoio da Associação Palombar, uma organização ambiental dedicada à conservação da biodiversidade do nordeste transmontano, a comunidade reconstruiu as margens da nascente, plantou vegetação ripícola e instalou painéis informativos para visitantes. Resultado? A qualidade da água melhorou e a nascente estabilizou o caudal, mesmo em meses mais secos.
Mais a sul, em Almodôvar, na região do Baixo Alentejo, a Associação Transumância e Natureza recuperou a Nascente da Ribeira de Cobres com o envolvimento dos alunos da Escola Básica local. O projecto, financiado pelo programa europeu LIFE, serviu não apenas para melhorar a retenção de água como para educar as crianças sobre a importância dos ecossistemas aquáticos.
De norte a sul, são várias as ações em curso. Em 2022, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) identificou mais de 180 nascentes em risco de degradação nos Parques Naturais da Serra da Estrela, Douro Internacional e Sudoeste Alentejano. A pressão turística, os fogos florestais e a redução da precipitação contribuíram para este cenário preocupante.
Desafios e Oportunidades
A protecção das nascentes está longe de ser um percurso simples. Em muitas localidades, as fontes estão em terrenos privados ou em zonas sem registo fundiário claro, o que dificulta intervenções. Além disso, a burocracia para aceder a fundos públicos continua a ser um entrave para pequenos projectos comunitários.
No entanto, têm surgido oportunidades. A Universidade de Évora, através do seu Instituto Mediterrânico para a Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento (MED), tem vindo a desenvolver mapas de vulnerabilidade hídrica e a colaborar com câmaras municipais para integrar as nascentes em planos de ordenamento e adaptação climática. Em 2023, um estudo liderado pela investigadora Inês Lopes identificou que 37% das nascentes analisadas apresentavam sinais de contaminação por nitratos de origem agrícola.
Noutro exemplo positivo, a Câmara Municipal de Castelo de Vide, no Alto Alentejo, criou um programa de voluntariado ambiental denominado “Adopte uma Nascente”, onde cada cidadão ou associação pode responsabilizar-se por uma nascente do concelho, zelando pela sua limpeza e monitorização.
Apesar de pequenos em escala, estes exemplos têm grande impacto local e funcionam como modelos replicáveis em outras regiões. O envolvimento direto da população, a formação técnica e o apoio institucional revelam-se fundamentais para garantir a sobrevivência destes pontos de água.
Portugal enfrenta, cada vez mais, um verão permanente. A crise hídrica deixou de ser uma projecção longínqua e tornou-se uma realidade tangível que se sente nas torneiras, nos campos ressequidos e nos leitos secos dos rios. É por isso urgente reconhecer o valor das nascentes, não como meros caprichos geológicos, mas como estruturas vitais para a sobrevivência do território.
A ação das comunidades locais tem mostrado que é possível cuidar da água com afeto e responsabilidade. Não se trata apenas de uma luta ambiental; é, acima de tudo, uma questão de soberania ecológica. Proteger as nascentes é proteger o futuro.