O Contra‑ataque Invisível em Montemor‑o‑Velho
No Baixo Mondego, Montemor‑o‑Velho continua a moldar a paisagem com arrozais que, este ano, cobrem aproximadamente 8 500 hectares, segundo o relatório mais recente da Direção‑Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR). Apesar da aparente tranquilidade, debaixo das águas serenas inicia-se uma batalha microscópica que pode reverter séculos de tradição agrícola. A microbiota — conjunto de bactérias, fungos e protozoários que mantém o ciclo hidrológico e a qualidade da água — está a ser dramaticamente alterada pelos escoamentos de nitratos, fosfatos e pesticidas.
A Dra. Júlia Galante, do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra (UC), lidera uma investigação que, desde novembro de 2024, recolhe amostras em cinco pontos-chave do rio Mondego, incluindo a Barragem da Aguieira, a Ponte Rainha Santa Isabel e a confluência com o rio Pranto. Os resultados apontam para concentrações de nitratos superiores a 50 mg/L — o dobro do limite recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) — e fosfatos 60% acima do valor considerado seguro. "Em alguns trechos detetámos 200 µg/L de pesticidas organofosforados", afirma Galante, lembrando que "estes níveis, em países como França ou Alemanha, motivariam ações fiscais imediatas contra os agricultores responsáveis".
A proliferação de cianobactérias, visível em manchas de cor verde‑escuro nas margens, iniciou um fenómeno de eutrofização que gera zonas de hipoxia, onde o oxigénio desce a níveis críticos. O Instituto das Águas de Portugal (ex-INAG) teve de reforçar o cloro nos sistemas de captação de Coimbra, custando um acréscimo médio de 15% na factura final de água para 250 000 utentes. Estas medidas são paliativas e não resolvem a perda de diversidade: "Em 2025 registámos um declínio de 45% em espécies de macroinvertebrados, fundamentais para a cadeia alimentar aquática", lamenta o investigador Pedro Ferreira, do Laboratório de Ecologia Aquática da UC.
Sensores a Registar Cada Gota no Cávado
Mais a norte, o rio Cávado estende-se por 135 km desde as nascentes em Terras de Bouro até à foz em Esposende, banhando concelhos emblemáticos como Ponte de Lima e Barcelos. No início de 2025, a Escola Profissional de Ponte de Lima, em colaboração com a AgriTech Norte (start‑up sediada em Braga) e financiada por fundos do programa Portugal 2020, instalou 20 sensores IoT ao longo de troços críticos.
Jorge Mendes, engenheiro agrónomo da AgriTech Norte, detalha: "Após a tempestade de Fevereiro, os picos de azoto chegaram a 25 mg/L — cinco vezes acima do valor considerado seguro para águas doces", explica. Estes dados cruzam‑se com relatórios do Laboratório da Água da Universidade do Minho, que registaram uma queda de 28% na biomassa de boga‑raiana e 35% na de barbo entre Janeiro e Maio de 2025. Helena Carvalho, presidente da Associação de Pescadores do Cávado, sublinha: "150 pescadores artesanais dependem destas águas para garantir subsistência — a escassez de captura traduz-se em redução de 40% nas receitas mensais de muitos lares".
A influência estende-se à viticultura: os vinhos DOP Vinho Verde de Barcelos e Ponte de Lima, produzidos por cerca de 200 viticultores, apresentaram uma variação de 0,5% na acidez total em colheitas de 2024, segundo estudo do Instituto Politécnico de Viana do Castelo. Estes perfis alterados comprometem a classificação internacional e poderão causar uma descentralização de exportações estimada em 1,2 milhões de euros anuais.
Vozes de Sandomil e Gouveia: o Eco das Margens
Em Sandomil, no concelho de Gouveia, a paisagem rural pintada por vales verdejantes contrasta com as memórias dos mais antigos. João Carvalho, 68 anos, antigo moleiro e residente de longa data, recorda: “Quem não se lembra das longas tardes de Verão a mergulhar nas águas límpidas do Mondego? Hoje, nem com bóia as famílias se atrevem.” O turismo rural, que já acolheu até 2 000 visitantes em 2019, sofreu uma queda de 20% nos últimos três anos, segundo a Câmara Municipal de Gouveia.
Do ponto de vista da saúde, o Centro de Saúde de Gouveia regista um aumento de 23 casos de alergias cutâneas e 17 de problemas gastrointestinais só no primeiro semestre de 2025 — dados revelados pela enfermeira Maria Rosa. No Hospital Universitário de Coimbra, o Serviço de Saúde Pública, liderado pela Dra. Ana Margarida Costa, documentou um crescimento de 15% nas consultas por intoxicações relacionadas com consumo de água não tratada entre 2022 e 2024. Paralelamente, o Município de Coimbra realça que os custos de tratamento de água subiram 12%, refletindo na fatura média do consumidor.
As consequências sociais são também notórias: escolas primárias de freguesias afetadas, como Oliveira do Mondego e Penacova, relatam ausências de alunos devido a doenças ligeiras, e as associações locais de pais começaram a distribuir filtros domésticos, suportados por donativos de empresas como a SMAS de Coimbra.
Biótopos, Restaurações e Rebeldia Agrícola
Para combater esta maré de contaminação, a DGADR lançou, em Junho, um projeto-piloto para implementação de faixas de amortecimento vegetais — os «filtros verdes». O Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas (ICAAM) da UC coordena o plantio de 5 hectares de salgueiro‑branco, amieiro e cana‑brava nas margens do Mondego e do Cávado. Estudos preliminares indicam uma eficácia de retenção de até 40% dos nutrientes e pesticidas em condições de caudal médio.
O programa LIFE AquaGuard alargou-se a 30 agricultores de Vila Verde, em parceria com a associação AgriMinho, dispondo de um orçamento de 2,5 milhões de euros até 2028. Maria Teixeira, produtora de framboesas, descreve a transição: "Passámos de técnicas convencionais para agricultura de precisão com aplicações satélite e drones. Reduzimos 35% dos fertilizantes, mas vimos um aumento de 10% na produtividade e qualidade da colheita de 2024".
A Quercus — Associação Nacional de Conservação da Natureza — e a Federação Nacional de Regantes promovem mais de 20 workshops anuais. Nestes, 200 agricultores aprendem a instalar estações meteorológicas locais, a implementar rotação de culturas e a adotar o sistema de agroflorestação, uma técnica que intercala árvores de fruto com culturas anuais, reduzindo a erosão do solo em 25%.
Porquê Agir Agora?
O contexto nacional revela que 32% do território português está ocupado por agricultura intensiva, com 70% da produção de hortofrutícolas destinada à exportação. "Sem rios saudáveis, perdemos credibilidade no mercado internacional", alerta o professor Pedro Guerreiro, do Centro de Ecologia Funcional da UC. A microbiota fluvial, base da cadeia alimentar aquática, encontra-se em risco: sem os micro-organismos, desaparecem insetos aquáticos, peixes e, por fim, toda a biodiversidade interconectada.
A União Europeia definiu que todos os Estados-membros devem cumprir a diretiva-quadro da água até 2027. Portugal tem pela frente o desafio de assegurar água potável para 3,5 milhões de pessoas e o sustento de 10 000 famílias ribeirinhas. A adoção de práticas agrícolas amigas do ambiente pode ainda abrir portas ao próximo Quadro Comunitário de Apoio, com fundos estimados em 25 mil milhões de euros, e reforçar o selo "Montemor Sustentável", promovido pelo Turismo de Portugal para valorizar destinos que conciliem natureza e turismo.
Este não é apenas um problema ambiental — é uma questão económica, social e cultural. Rios vivos significam comunidades resilientes, agroindústria competitiva e um Portugal que reafirma as suas raízes, honrando a herança das paisagens aquáticas que moldaram a identidade nacional.