Por João Ricardo Lemos | Deep Report News | Viseu
Nas margens do rio Alva, em Alvoco das Várzeas — uma freguesia pitoresca do concelho de Oliveira do Hospital — ainda se ouve, ao longe, o coaxar das rãs e o ranger dos carvalhos ao vento. Mas mesmo aqui, onde o tempo parece sempre ter andado mais devagar, há quem diga que os dias já não "tocam" como antigamente.
“Antes ouvia-se o sino da igreja marcar as horas, o burro a zurrar na rua e os miúdos a brincar até à noitinha. Agora… ouve-se pouco mais do que o silêncio”, lamenta António Godinho, 73 anos, um dos poucos habitantes permanentes da aldeia. “Os filhos foram para Lisboa, os vizinhos morreram ou mudaram-se, e os sons foram com eles.”
Este testemunho não é caso único. Um relatório publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 2022 revelou que mais de 60% das freguesias portuguesas registaram perda populacional na última década, sendo a maioria localizada em zonas rurais. Este fenómeno de desertificação humana traz consigo uma consequência menos visível, mas profundamente sentida: o apagamento da paisagem sonora tradicional de Portugal.
A paisagem sonora — termo cunhado pelo compositor canadiano R. Murray Schafer — é o conjunto de sons que caracteriza um lugar. No contexto português, isso pode significar o tilintar dos sinos em Monsanto, o restolhar das folhas nas encostas da Serra do Açor, ou o pregão do peixeiro em Peniche. Com a migração massiva para os centros urbanos e o abandono das aldeias, muitos destes sons desapareceram ou foram abafados por ruídos industriais, motores e maquinaria agrícola moderna.
A investigadora Teresa Vieira, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho, alerta que “a identidade de um lugar não se define apenas pela arquitetura ou costumes, mas também pela sua acústica”. Segundo a investigadora, “quando perdemos os sons de uma aldeia, perdemos uma camada invisível mas essencial da memória coletiva”.
E há razões para preocupação. De acordo com um levantamento do Laboratório Paisagem de Guimarães, mais de 300 aldeias portuguesas encontram-se atualmente em risco de abandono total até 2040, o que implicará também a extinção das suas sonoridades únicas.
Face a esta crise sonora, algumas iniciativas têm tentado registar e preservar os sons de Portugal antes que desapareçam. Uma das mais notáveis é o projeto “Xisto Sonoro”, promovido pela ADXTUR – Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto. Em parceria com universidades, o projeto tem recolhido gravações de sons característicos das 27 aldeias que compõem a rede: o som da água a correr, o trabalhar do ferreiro, a azáfama dos mercados locais, entre outros.
Outra figura incontornável neste campo é Luís Antero, artista sonoro natural de Oliveira do Hospital, que desde 2008 tem percorrido o país com um microfone e um gravador na mão. “Registar um riacho, uma reza em voz baixa ou um pastor a chamar as ovelhas é mais do que arquivar som; é proteger pedaços de uma cultura que se desfaz todos os dias”, afirma. As suas gravações, disponíveis online, integram hoje arquivos de referência como o Museu da Paisagem Sonora em Viseu e o Arquivo Sonoro da Rádio Universidade de Coimbra (RUC).
No litoral, o projeto europeu "Sonotomia", com envolvimento do DGArtes e da Universidade Nova de Lisboa, tem mapeado mudanças nas paisagens sonoras costeiras, especialmente em zonas como a Costa Vicentina e a Ria de Aveiro, onde a pressão turística tem modificado radicalmente o ambiente acústico.
O desaparecimento da paisagem sonora não é apenas uma perda cultural — é também uma questão de sustentabilidade ambiental e bem-estar. Estudos conduzidos pelo Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) indicam que a exposição a sons naturais, como água corrente e canto de aves, reduz os níveis de cortisol e contribui para a saúde mental. A sua substituição por ruído urbano tem sido associada ao aumento da ansiedade e do stress crónico.
Por outro lado, há municípios a mostrar que é possível inverter a tendência. Em Castro Laboreiro, no concelho de Melgaço, a junta de freguesia em conjunto com a Escola Superior Agrária de Ponte de Lima, iniciou um programa de sensibilização sobre sons locais nas escolas primárias. As crianças aprendem a identificar sons típicos da região e registam-nos em diários auditivos. “Estamos a educar o ouvido para valorizar aquilo que é nosso e não se vê”, afirma o professor Jorge Sampaio, coordenador da iniciativa.
Portugal é, há muito, um país de sons — do fado triste nas vielas de Alfama aos sinos que marcam o compasso da fé em aldeias quase esquecidas. Mas se não agirmos agora, corremos o risco de tornar-nos surdos à nossa própria história.
A paisagem sonora é património. E como todo o património, precisa de ser escutado, compreendido e protegido. Porque num país onde já tanto foi silenciado, os sons que ainda resistem são um eco precioso daquilo que somos.