Em tempos em que o interior do país se debate com o abandono e o envelhecimento da população, há uma tradição ancestral que, de forma discreta mas vigorosa, está a devolver vida às matas e esperança às comunidades. Trata-se da apanha de cogumelos silvestres — uma actividade tão antiga como o pastoreio, mas que só recentemente começa a ser olhada com o respeito e a atenção que merece.
No sopé da serra da Gardunha, em aldeias como Alcaide, Fatela e Chão da Cruz, há cada vez mais mãos calejadas — e também mais jovens curiosos — a regressarem ao monte logo após as primeiras chuvas de outono. António Primo, agricultor de 66 anos, conta com orgulho: "Este ano, encontrei um míscaro bravo que quase enchia a cesta sozinho. É um presente da terra, e vale ouro se for bem tratado".
Não é exagero. Um quilo de Boletus edulis (conhecido localmente por "porcini") pode chegar aos 30 euros nos mercados especializados. Já os míscaros, favoritos nos mercados de Fundão e Covilhã, atingem entre 10 e 18 euros por quilo em épocas de escassez. Estes valores transformaram o que era, para muitos, apenas um costume de outono num verdadeiro complemento de rendimento, ou até num novo sustento.
Este renascimento não tem apenas reflexos na economia doméstica. A Universidade de Évora, através da Escola de Ciências e Tecnologia, oferece formações específicas sobre micologia silvestre, ensinando a distinguir espécies comestíveis das tóxicas, e promovendo práticas de apanha sustentáveis. "Muita gente apanhava sem saber o que levava para casa. Agora há mais consciência, mais formação e também mais responsabilidade", explica a professora Marta Correia, coordenadora do curso.
O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) estabeleceu normas para a apanha: um máximo de 3 kg por pessoa/dia, uso de cestos arejados (nunca sacos plásticos), e a obrigatoriedade de preservar os micélios, deixando parte do cogumelo no local. Estas orientações visam garantir que a recolha não comprometa a regeneração das espécies e a biodiversidade dos ecossistemas.
Ainda assim, como alerta a associação ambientalista Quercus, há zonas do país onde a fiscalização é quase inexistente, e a apanha predatória continua a ameaçar habitats frágeis. A organização apela a uma regulamentação mais firme da comercialização informal — sobretudo nas feiras locais — onde, muitas vezes, espécies tóxicas são vendidas lado a lado com as comestíveis, sem controlo.
A cooperativa "Cogumelos do Zêzere", com sede em Manteigas, é um exemplo de como a apanha pode ser feita com rigor, ética e retorno económico. Fundada em 2019, envolve hoje mais de 40 apanhadores credenciados, que seguem protocolos exigentes e vendem os seus produtos a restaurantes de Lisboa e Porto. "Não é só recolher: é cuidar da floresta, saber esperar, e respeitar o ciclo da natureza", sublinha Rui Silva, presidente da cooperativa.
Dados da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) apontam para um aumento de 35% no volume de cogumelos silvestres certificados entre 2018 e 2023, com destaque para as regiões da Beira Interior, Alto Minho e Trás-os-Montes. O mesmo relatório destaca o potencial turístico da atividade, com eventos como o "Festival do Cogumelo" em Alcaide a atraírem centenas de visitantes todos os anos.
Mais do que um produto da floresta, os cogumelos silvestres tornaram-se um símbolo de resiliência. Em aldeias onde quase tudo parece ter parado no tempo, eles são, curiosamente, sinal de futuro. Um futuro que cresce em silêncio, à sombra dos castanheiros, mas que pode — se bem cuidado — sustentar comunidades inteiras.
Portugal redescobre-se, por vezes, no mais simples dos gestos: caminhar no mato com os olhos no chão e o coração ligado à terra.