Portugal esconde bairros-dormitório onde reina o silêncio: vidas suspensas no betão suburbano
Quem passa pela Quinta do Picão, em Odivelas, ou pelo Bairro do Meiral, em Vila Nova de Gaia, poderá pensar que se trata de zonas perfeitamente comuns: prédios modernos, ruas asfaltadas, passeios amplos, algumas varandas com plantas. No entanto, o que salta à vista não é o que lá está, mas o que falta: vida.
Nestes chamados bairros-dormitório, a paisagem humana é escassa. As ruas estão vazias durante o dia, os comércios escasseiam ou não existem, os sons resumem-se ao zumbido distante do trânsito. É um Portugal onde se mora, mas não se vive.
"Aqui não há pracetas onde se jogue à bola, nem velhotes a conversar no banco de jardim. Não há jardim, sequer", conta Fernanda Duarte, 58 anos, moradora em Rio de Mouro, Sintra. "Nunca conheci o nome de nenhum vizinho em vinte anos. O correio é entregue por baixo da porta e o resto faz-se por e-mail."
Estes bairros emergiram durante o boom imobiliário das décadas de 1990 e 2000, pensados para responder à procura de habitação mais acessível nos arredores das grandes cidades. Mas o crescimento foi feito à pressa, sem planeamento comunitário, criando territórios funcionais e frios, onde a relação entre vizinhos é praticamente inexistente.
Urbanismo sem alma, comunidades sem rosto
A Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP) e o Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova têm estudado estes fenómenos com preocupação. Um levantamento publicado em 2022 mostra que mais de 32% das urbanizações construídas nos últimos 25 anos nos distritos de Lisboa e Porto funcionam como bairros-dormitório, sem acessos fáceis a comércio local ou equipamentos sociais.
Pedro Campino, arquitecto e investigador em urbanismo social, considera que "foi um erro crasso ter deixado a promoção imobiliária decidir a morfologia das cidades". E explica: "Se o bairro não tem escola, café, papelaria, centro de saúde ou parque infantil, torna-se apenas um local de passagem entre o carro e o lar."
Um exemplo flagrante pode ser encontrado na freguesia de Fernão Ferro, no Seixal, onde a população aumentou 32% nos últimos 15 anos, segundo o INE, mas onde os equipamentos públicos permanecem praticamente inalterados desde 2005. "Cresceu o betão, mas não cresceu a vida", afirma Margarida Lopes, professora reformada e residente na zona.
Em bairros como a Encosta do Sol, na Amadora, ou Lamaçais, em Braga, a repetição do padrão é evidente. Tiago Almeida, engenheiro informático de 41 anos, mora num bloco com 24 apartamentos. "Vejo os vizinhos dentro dos carros ou a correr para o elevador. Nunca houve jantares de prédio, festas na rua ou sequer uma conversa no patamar."
Infâncias solitárias, futuras gerações desconectadas
O problema é mais grave quando olhamos para as crianças. "Elas vivem uma existência encapsulada", alerta Joana Nogueira, psicóloga no Instituto de Educação da Universidade do Minho. "Passam da carrinha escolar para o apartamento, e do apartamento para o telemóvel. É uma infância sem rua, sem brincadeira espontânea, sem convívio com outras crianças."
Estudos europeus demonstram que a interação social livre durante a infância é essencial para o desenvolvimento emocional e cognitivo. Em Portugal, segundo dados do INE, mais de 21% das famílias em zonas periféricas não têm acesso a espaços verdes a menos de 500 metros da habitação. Acresce ainda que, segundo a Direcção-Geral da Educação, mais de 12% das escolas primárias localizadas em periferias urbanas têm menos de 100 alunos inscritos, o que demonstra uma distribuição desequilibrada da população jovem.
Planeamento urbano ou improvisação em betão?
Carla Silva, urbanista e ex-consultora do Plano Director Municipal de Cascais, critica a falta de integração nas políticas públicas. "Foi tudo feito a pensar em resolver o problema da habitação a curto prazo, sem imaginar o que é viver. Resultado: temos bairros tecnicamente habitáveis, mas humanamente inabitáveis."
Almada, Gondomar, Matosinhos, Loures ou Seixal concentram hoje centenas de urbanizações onde as pessoas vivem de costas voltadas. Em algumas freguesias, como Fernão Ferro ou Canidelo, mais de 70% dos fogos estão em zonas que não têm qualquer tipo de equipamento social num raio de 1 km, segundo dados da Direcção-Geral do Território.
A Associação Portuguesa de Urbanistas (APU) tem alertado para este problema desde 2018, quando publicou o relatório "Cidades em Extensão: o futuro da periferia urbana". Nele, são apontadas recomendações para integrar funções sociais, culturais e económicas em novos empreendimentos, como condição essencial para garantir coesão e vivência comunitária.
Do silêncio à resistência: há quem esteja a mexer-se
Nem tudo são sombras. Em Valongo, a Associação Bairro Vivo lançou um projecto de encontros semanais chamado "Café de Porta Aberta", que hoje junta mais de 50 vizinhos em roda de conversa, partilha de livros e jogos de tabuleiro. Em 2024, alargaram o programa a outras duas urbanizações no concelho, com o apoio da Câmara Municipal.
Inês Galvão, arquitecta ligada ao projecto municipal Almada Participa, tem proposto a reabilitação de pracetas esquecidas e instalação de hortas comunitárias. "A cidade não se faz só com tijolo. Faz-se com encontros, vizinhança, afectos."
Projectos-piloto como o "Espaço de Todos", em Vialonga, Lançado pela Junta de Freguesia e pela Universidade de Lisboa, criaram zonas de lazer com mobiliário urbano, zonas sombreadas e circuitos para seniores e crianças. A frequência duplicou o número de utentes dos serviços sociais locais em apenas um ano, segundo dados da própria autarquia.
Olhar de frente para o vazio
É urgente reconhecer que há um vazio que vai para além do urbanístico. É um vazio relacional, social e emocional. O crescimento urbano não pode continuar a ignorar o elemento mais essencial da cidade: as pessoas. Planeia-se em metros quadrados, mas vive-se em laços humanos.
Portugal precisa de repensar o que é viver em comunidade antes que o betão nos isole de vez. O futuro não pode ser apenas construído em altura. Tem de ser também desenhado ao nível da proximidade.