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Bairros Fantasma em Portugal: Quando Uma Rua Vale Por Uma Zona Inteira e Ninguém Tem Morada Oficial

Moradores de Estrada da Portela, em Sintra, e de outras zonas isoladas relatam dificuldades de acesso a serviços públicos, falhas de correios e falta de reconhecimento oficial, enquanto entidades estudam soluções para estes bairros invisíveis.

Sofia Ribeiro Almeida Sofia Ribeiro Almeida Jornalista de Tecnologia, Ciência, Saúde, Meio Ambiente e Clima | Porttugal
7 Minutos
2025-06-14 09:15:00
Bairros Fantasma em Portugal: Quando Uma Rua Vale Por Uma Zona Inteira e Ninguém Tem Morada Oficial

O Desafio da Identidade Urbana e a Invisibilidade Toponímica

À beira de Colares, no concelho de Sintra, ergue-se a Estrada da Portela, uma via sinuosa de pouco mais de dois quilómetros onde cerca de 120 residentes partilham um mesmo «endereço-fantasma». Nem o Instituto Nacional de Estatística (INE), nem os CTT reconhecem esta rua como localidade autónoma — está registada como «Rua sem Nome» no sistema interno, sem referência a Colares. Maria Ferreira, professora reformada de 67 anos, vive aqui desde 1982 e conta, com voz trémula, que «quando envio pedidos de urgência ou registos médicos, os hospitais de Cascais e Amadora acabam por remeter-me para Telhal, a três quilómetros dali, porque só reconhecem aquela terra como freguesia». O resultado traduz-se em moradas trocadas, cartas extraviadas e uma sensação de invisibilidade que se repercute desde a marcação de consultas até ao envio do pedido de reforma. Num inquérito informal realizado em março de 2025 junto de 50 moradores, 94% relatou ter passado por situações similares pelo menos uma vez nos últimos dois anos.

No extremo oposto do país, em Montalegre (distrito de Vila Real), outra realidade reforça o drama: João Carvalho, 34 anos, conduz uma carrinha de entregas na TransMontis e percorre diariamente a Rua de Vale de Fornos — também ela ausente de qualquer mapa oficial. «Os sistemas de GPS fazem-me parar no meio do mato e acabo sempre a ligar ao cliente: ‘Está mesmo ali, junto ao antigo moinho?’», confidencia. Em 2024, mais de 25 encomendas foram devolvidas por alegada «morada inválida», representando um prejuízo aproximado de 3 500€. Mas não se trata apenas de perdas financeiras. Em junho de 2023, a compostagem de resíduos orgânicos foi interrompida durante quatro semanas, porque o contentor não era entregue em Vale de Fornos. E em dezembro do mesmo ano, uma ambulância demorou 22 minutos a localizar uma habitação, contribuindo para uma situação de hipotermia num idoso de 78 anos, segundo registos do INEM.

Burocracia e Serviços em Cheque

A dependência exclusiva dos CTT para validar endereços é apenas a ponta do icebergue. Nas juntas de freguesia de São João das Lampas (Sintra) e Terras de Bouro (Montalegre), estima-se que existam, pelo menos, 40 ruas e pequenos aglomerados sem topónimo oficial. Rui Mendes, vogal da Junta de São João das Lampas, admite que «muitos loteamentos surgiram de forma espontânea, sem qualquer processo de urbanização. Não há planta nem projecto que os registe. Ficam eternamente como ‘Rua sem Nome’ ou sequer não constam nas bases de dados». Estatísticas da CIM Lisboa e Vale do Tejo apontam que 12% das novas moradias nos últimos cinco anos em Colares ficaram com registo incompleto, sobretudo em zonas costeiras ou periurbanas.

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O impacto social transcende as correspondências. No inverno de 2021, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) registou três chamadas de socorro em Estrada da Portela que sofreram atrasos superiores a 15 minutos. «Houve situações em que o tempo de resposta excedeu o dobro do previsto», afirma a enfermeira Cristina Santos, do Hospital Amadora-Sintra. Paradoxalmente, enquanto 90% da população urbana em Portugal tem acesso a sistemas de GIS atualizados, estes bairros invisíveis continuam remetidos a coordenadas approximadas.

Ecos na Educação, Impostos e Planeamento

A invisibilidade toponímica estende-se a escolas e rendas municipais. A escola básica de Colares, dirigida por Ana Lopes, recebeu em 2024 cinco alunos que nunca constaram nos censos do agrupamento, simplesmente porque moravam em Estrada da Portela sem registo oficial. «Sem topónimo, não há inscrição válida, e as crianças ficam condicionadas no transporte escolar», explica. A Autoridade Tributária e Aduaneira confirma que mais de 20 propriedades em Vale de Fornos foram tributadas como «Terras Baldias», por não haver morada definida.

O planeamento urbano sofre igualmente. O Observatório do Território lamenta que «áreas com toponímia irregular não sejam abrangidas por programas de reabilitação urbana ou redes de saneamento», criando ilhas de exclusão deliberada. Projectos como o Plano de Ação para as Regiões Centro (PARC) deixam de fora 15% das aldeias com densidade populacional inferior a 10 habitantes/km².

Iniciativas para Reconhecimento e Soluções

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Diante deste impasse, multiplicam-se iniciativas cidadãs e académicas. A Universidade de Lisboa, através do Centro de Investigação em Geografia e Ordenamento do Território (CIGOT), em parceria com o Instituto Geográfico do Exército, lançou um projeto-piloto de georreferenciação participativa em fevereiro de 2024. O estudo envolveu 80 voluntários que marcaram 230 coordenadas GPS na Estrada da Portela e 150 coordenadas na Rua de Vale de Fornos, submetendo-as ao Sistema Nacional de Informação Territorial (SNIT). «É um passo fundamental para a coleta de dados, mas não dispensa a atualização legislativa», sublinha a geógrafa Vera Gonçalves.

No distrito de Vila Real, a Câmara Municipal de Montalegre inaugurou, em março de 2025, o programa “Cidadania Cartográfica”. Sob orientação de técnicos como Paulo Lopes, 50 moradores de Salto e Lamas de Olo frequentaram oficinas de edição em OpenStreetMap, Google Map Maker e SIG Livres. «Criámos um dossiê com 65 vias a reconhecer pelo INE, pelos CTT e pela Autoridade Tributária», revela Lopes. A Associação Portuguesa de Geógrafos (APG) aponta que a diretiva INSPIRE (Infrastructure for Spatial Information in Europe) contempla a inclusão de toponímia vernacular, servindo de base legal para este reconhecimento.

A Direção-Geral do Território (DGT) lançou, em abril de 2025, um módulo online de submissão de pedidos de reconhecimento toponímico. Em São João das Lampas, a Junta de Freguesia já protocolou três candidaturas e aguarda resposta há quase um ano. «Esperamos que o processo seja célere, mas os prazos assumem contornos de meses, não de semanas», lamenta Rui Mendes.

Urgência e Importância Social

Este debate ultrapassa o mero registo de ruas: trata-se de garantir direitos cívicos, acesso a educação, saúde, correio, saneamento básico e justiça fiscal. A investigadora Helena Marques, do Centro de Estudos Sociais da Universidade do Minho, alerta que «a invisibilidade toponímica aprofunda as desigualdades territoriais e mina a coesão social». Se nada mudar, milhares de portugueses continuarão privados de direitos básicos e sujeitos a custos adicionais inexistentes.

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A resposta política ganha cada vez mais relevância. Em abril de 2025, a Comissão Parlamentar de Administração Pública debateu a matéria, com intervenções dos deputados Isabel Moreira (PS) e Hugo Soares (PSD). A proposta de criação de um regime simplificado de atribuição de topónimos foi aprovada por unanimidade na especialidade, com vista a integrar o Orçamento do Estado de 2026.

Enquanto isso, os cidadãos mobilizam-se. Maria Ferreira coordenou uma petição que reuniu 1 450 assinaturas em três meses, exigindo a inclusão oficial da Estrada da Portela nos sistemas nacionais. João Carvalho obteve o apoio da Associação de Empresários Transmontanos, que se comprometeu a pressionar a Assembleia da República através de um abaixo-assinado corporativo.

Este é um momento decisivo: só uma convergência efetiva entre moradores, universidades, juntas de freguesia, autarquias, instituições estatais e representantes parlamentares garantirá que estes bairros sem nome saiam do limbo cartográfico e ganhem voz e visibilidade no coração de Portugal.