O peso da falta de documentos na vida de milhares de jovens em Portugal
É difícil imaginar que, nos corredores lumínicos das câmaras municipais e nos balcões do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), exista uma legião silenciosa de cidadãos que, formalmente, não existem. Entre Vila Real e o Algarve, há jovens que não conseguiram dar o primeiro passo — reclamar a sua própria identidade. Segundo dados preliminares do Instituto Nacional de Estatística (INE), estimava-se em 2024 que mais de 2 500 indivíduos com idades compreendidas entre os 16 e os 24 anos permanecessem sem Cartão de Cidadão, bloqueados por falhas burocráticas e falta de documentos de origem.
Miguel Silva, 17 anos, é um rosto conhecido desta realidade. Nascido numa noite enevoada em Mondim de Basto (distrito de Vila Real), cresceu em casa de avós, ambos reformados da agricultura. A viagem até Vila Real — onde deveria ter sido registado — coincidiu com uma greve dos funcionários da Conservatória local, prolongando-se por semanas. “Quando finalmente lá chegámos, disseram-nos que o sistema tinha corrompido o ficheiro e que teríamos de apresentar prova de morada antiga, algo que a minha avó não tinha guardado”, recorda. Sem documentos que provassem o local de nascimento, Miguel viu o sonho de frequentar uma licenciatura na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) esmorecer antes mesmo de começar.
No distrito de Coimbra, Joana Carvalho, 19 anos, enfrentou o pesadelo burocrático quando o incêndio num antigo armazém junto à rua de Santa Maria, em Góis, consumiu décadas de arquivos da Conservatória. “Perdi a certidão original, mas tentámos tudo: fizemos pedidos extraordinários ao Tribunal de Coimbra, pagámos taxas superiores a 100 € para obter auto de réplica, mas sem garantias de sucesso”, explica. Hoje, Joana continua a viver com registo provisório, impedida de aceder a subsídios de estudo na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e de requisitar empréstimos de equipamento no Centro de Documentação da Biblioteca Joanina.
A Cáritas Diocesana de Braga, através do programa Jovem Cidadão, já acompanhou mais de 60 jovens em situação semelhante desde 2022, muitos deles vítimas de abandono parental ou de famílias desmontadas pela crise habitacional. O padre António Jorge, responsável pelo serviço em Braga, estima que 40% dos casos envolvam jovens em regime de acolhimento familiar. “São situações dramáticas: crianças que passaram por vários lares e que, quando chegam à maioridade, descobrem que não têm identidade a que se agarrar”, lamenta.
O labirinto da burocracia e as suas consequências humanas
Desde 11 de junho de 2024, o Cartão de Cidadão passou a incorporar chip de segurança avançada e uma nova imagem facial biométrica, em conformidade com o Regulamento (UE) 1157/2019. Contudo, a modernização tecnológica não solucionou a falta de documentos de base: certidão de nascimento, Número de Identificação Fiscal (NIF) e comprovativo de morada. O IRN exige, ainda, apresentação de comprovativo de filiação e, em muitos casos, certidão de registo de batismo, um requisito invocado em antigas freguesias do Algarve como Portimão ou Tavira.
Em 2024, o IRN registou um atraso médio de 12 dias úteis na emissão de Cartões de Cidadão para pedidos com documentação completa — um valor que sobe para 45 dias quando há necessidade de averiguações jurídicas. No Espaço Cidadão do Terreiro do Paço, em Lisboa, a técnica de registos Sofia Marques confirma que “temos casos de jovens que não sabem sequer quem figura como pai ou mãe na certidão, forçando-nos a pedir certidões complementares, com custos que podem chegar a 150 € por pedido”. Em Braga, o diretor da Conservatória de Registo Civil, Dr. Luís Almeida, refere que a carência de funcionários — 30% abaixo do recomendado pela tutela — agrava o congestionamento dos processos.
O estudo «Burocracia e Juventude: Descaso ou Desafio?» da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, coordenado pela professora Isabel Soares, alerta para a “falta de articulação entre serviços sociais, tribunais e registos civis”, criando um ciclo de indefinição que mina a autoestima e a confiança dos jovens. Conclui, ainda, que 65% dos inquiridos em situação de vulnerabilidade social consideram inatingível o processo de regularização sem apoio externo.
O custo humano e económico desta exclusão não se mede apenas em euros. A falta de Cartão de Cidadão impede o acesso a cuidados de saúde não urgentes, tramites bancários — como a abertura de conta no Banco Santander em Valença — e a candidatura ao Programa Erasmus+, que em 2023 disponibilizou 20 bolsas para estudantes portugueses subrepresentados. Para quem pretende entrar no mercado de trabalho informal, a ausência de NIF inviabiliza qualquer contrato, empurrando muitos para precários serviços não declarados, como trabalhos de agricultura sazonal no Baixo Alentejo.
Iniciativas locais que marcam a diferença
Perante este cenário, algumas autarquias não esperaram pela tutela central. Em Torres Vedras, a Câmara Municipal implementou, em janeiro de 2025, uma Unidade Itinerante de Cidadania, composta por três elementos do IRN, um assistente social da Cruz Vermelha Portuguesa e um advogado voluntário da Ordem dos Advogados. Até maio, já atendeu 120 jovens nas freguesias de São Pedro da Cadeira, Maxial e Ramalhal, emitindo mais de 80 Cartões provisórios sem custo. “Ver um jovem receber o documento e chorar de emoção é a prova de que o aparelho do Estado pode servir para bem”, salienta Helena Pinto, vereadora da Ação Social.
Em Évora, a Santa Casa da Misericórdia, liderada por Ana Matos, criou o projecto “Raízes Renovadas”, que acolhe jovens em internamento temporário e, paralelamente, percorre paróquias rurais para recolher documentos antigos. Já regularizou 45 casos desde 2023, graças a uma parceria com a Direção-Geral da Administração Interna (DGAI), que facultou transporte gratuito e apoio técnico. “Para muitos, o maior obstáculo era deslocar-se a Évora ou Estremoz; agora, juntámos o formulário ao abraço da comunidade”, explica a diretora.
Também o sector privado tem contribuído. A Fundação Aga Khan Portugal lançou, em 2024, um fundo de 50 000 € para cobrir taxas de emissão e deslocações dos jovens sem Cartão. Em Braga, estudantes de Direito da Universidade do Minho voluntariaram-se para orientar 30 processos de pedidos extraordinários, reduzindo o tempo de regularização em 60%.
Reformas urgentes e um compromisso coletivo
Especialistas defendem uma reforma ampla: dispensar inicialmente as certidões de origem, permitindo provas tardias através de declarações de testemunhas reconhecidas pelos serviços sociais; desmaterializar por completo o processo de emissão, com assinatura digital qualificada; e criar um “Cartão Solidário” — um programa nacional que combine apoio jurídico, psicossocial e financeiro.
Em março de 2025, o Parlamento Português discutiu uma proposta de lei que apenas aguarda votação final, prevendo a dispensa temporária de certidões para agregados em risco. A Associação Revolução Brava e a Rede Nacional de Juventude exigem agora agilidade, referindo que “cada mês de atraso representa um jovem privado de oportunidades”. Na Comissão Parlamentar de Trabalho e Segurança Social, o deputado Miguel Freitas defendeu “uma solução de exceção que seja a regra quando falamos de direitos fundamentais”.
No coração deste debate, subjaz uma questão de justiça social: como aceitar que, em pleno século XXI, um pedaço de cartão determine o acesso a educação, saúde e emprego? A experiência de Miguel, Joana e dos mais de 2 500 jovens à espera de regularização não é um número anónimo. São rostos que clamam por dignidade. A burocracia, tão cara à rigidez do Estado, não deve transformar cidadãos em sombras sem nome. O relógio avança, mas o prazo para a mudança é agora.