O DESGASTE DOS PNEUS NOS VEÍCULOS ELÉCTRICOS: UMA QUESTÃO ESTRUTURAL E AMBIENTAL
Numa manhã clara e moderadamente agitada em Campo de Ourique, Lisboa, Joana Mendes, enfermeira de 42 anos no Hospital de Santa Maria, terminava as compras no mercado biológico local quando estacionou o seu Renault Zoe, um dos modelos eléctricos mais populares em Portugal. A sua escolha por um veículo eléctrico foi motivada não apenas por preocupações ambientais, mas também por benefícios fiscais e a expectativa de uma manutenção mais económica. "Sempre acreditei que estava a fazer uma escolha racional, mas fiquei surpreendida quando precisei de substituir os pneus com menos de 20 mil quilómetros", confidencia. A fatura ultrapassou os 300 euros, um valor que considerou "desproporcionado face ao prometido baixo custo de operação".
Casos semelhantes ao de Joana têm sido recorrentes em diversas regiões do país. Miguel Oliveira, taxista bracarense com mais de duas décadas de experiência, optou por um Tesla Model 3 em 2023. "O desempenho é fenomenal, mas a frequência com que preciso de mudar os pneus é assustadora. Só este ano já os troquei duas vezes", afirma.
Estes testemunhos não são casos isolados. Estudos conduzidos pela Emissions Analytics, organização britânica independente especializada em testes de emissões e durabilidade automóvel, revelam que os pneus de veículos eléctricos (EVs) apresentam uma taxa de desgaste entre 20% e 50% superior à dos modelos com motores térmicos. Este fenómeno deve-se, essencialmente, ao aumento da massa total do veículo (devido às baterias de lítio) e à disponibilidade imediata de binário, que exerce uma força adicional sobre os pneus, especialmente durante acelerações abruptas e em terrenos inclinados, como acontece frequentemente em cidades como Vila Real ou Guimarães.
A Associação Automóvel de Portugal (ACP) tem reforçado estes dados através das suas campanhas de sensibilização, sublinhando que "os veículos eléctricos, pela natureza do seu sistema de propulsão, sujeitam os pneus a níveis de stress mecânico consideravelmente superiores". A conjugação entre peso e resposta instantânea resulta numa degradação mais acelerada da borracha, exigindo estratégias de mitigação ainda pouco disseminadas entre o público.
CONSEQUÊNCIAS ECONÓMICAS E ECOLÓGICAS SUBESTIMADAS
No plano económico, esta problemática traduz-se em encargos significativos. Dados recentes da Deco Proteste indicam que o preço médio de um pneu adequado a veículos eléctricos varia entre 130 e 180 euros, podendo facilmente superar os 600 euros por conjunto, dependendo da marca e especificidade do modelo. Esta realidade contraria a ideia amplamente difundida de que a mobilidade eléctrica representa uma redução significativa de custos com manutenção.
Mais preocupante ainda é o impacto ambiental do desgaste dos pneus. Segundo investigação publicada em 2024 pelo Imperial College London, as partículas resultantes do atrito entre pneu e asfalto — designadas TRWP (tyre and road wear particles) — tornaram-se uma das principais fontes de poluição urbana não associadas a emissões do motor. Estima-se que até 5% dessas partículas fiquem suspensas no ar, sendo inaladas pela população, enquanto o restante se acumula em solos urbanos e sistemas hídricos, contaminando bacias hidrográficas e impactando negativamente os ecossistemas aquáticos.
No contexto português, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) está a realizar monitorizações sistemáticas em vias de elevada circulação como o IC19 e a VCI do Porto. Ana Paula Freitas, engenheira ambiental do LNEC, refere que "a concentração de partículas em zonas de tráfego intenso pode representar um risco de saúde pública, nomeadamente em grupos mais vulneráveis como crianças e idosos".
RESPOSTAS TECNOLÓGICAS E INSTITUCIONAIS
A indústria tem procurado responder ao desafio com propostas técnicas inovadoras. Em 2024, a Michelin apresentou o modelo e.Primacy 2, pneu que recorre a compostos de sílica e óleos vegetais na sua composição, visando aumentar a durabilidade e reduzir a resistência ao rolamento. A Bridgestone e a Continental seguiram o exemplo, com os modelos Turanza EV e EcoContact 6 Q, respectivamente, apostando em soluções de engenharia adaptadas ao peso e características específicas dos VEs.
Em paralelo, startups como a britânica Tyre Collective desenvolveram sistemas electrostáticos de captação de partículas emitidas pelos pneus, com base em princípios de física aplicada. Estes dispositivos, ainda em fase piloto, têm sido integrados em parcerias com universidades, como a de Southampton, e programas financiados pela União Europeia, nomeadamente o Horizon Europe.
A nível nacional, destaca-se o projecto colaborativo entre o Centro de Inovação da Geely Europe, a Universidade de Aveiro e a fabricante Linglong Tyre. Ensaios realizados em circuitos fechados em Bragança e Palmela demonstraram que a calibração correcta da pressão dos pneus pode reduzir até 30% do desgaste e permitir uma poupança energética de cerca de 25%. Esta evidência sugere que intervenções aparentemente simples, como o uso de sensores inteligentes de pressão, podem ter um impacto significativo na sustentabilidade da mobilidade eléctrica.
EXPERIÊNCIAS REGIONAIS E POLÍTICAS MUNICIPAIS
Ao nível municipal, algumas iniciativas merecem destaque. Em Faro, a operadora de transporte privado AlgarEasy integrou sistemas TPMS (Tyre Pressure Monitoring System) na totalidade da sua frota eléctrica. Segundo Rui Valente, gestor de frota, "esta medida resultou numa redução de aproximadamente 20% na frequência de substituição dos pneus, com uma poupança proporcional nos custos operacionais".
Em Coimbra, está em análise uma proposta para comparticipação municipal até 30% na aquisição de pneus para os autocarros eléctricos dos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra (SMTUC), com o objectivo de mitigar o aumento de 18% na fatura de manutenção registado nos últimos dois anos.
No Funchal, a Universidade da Madeira, em articulação com a Bosch Portugal e apoio financeiro do Fundo Ambiental, está a desenvolver sensores integrados nos pneus de veículos públicos. Estes sensores permitirão monitorizar em tempo real não só a pressão, mas também a temperatura e o índice de desgaste, contribuindo para uma gestão preditiva e mais eficiente das frotas.
FORMAÇÃO E CONSCIENCIALIZAÇÃO: PILARES PARA A MUDANÇA
A educação dos utilizadores é também uma ferramenta essencial. Em 2025, o ACP e o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) lançaram a campanha "Pé leve no eléctrico", uma iniciativa que percorreu escolas de condução em várias cidades portuguesas, promovendo boas práticas de condução eficiente. Entre os tópicos abordados estão a importância da condução suave, a antecipação do trânsito e a verificação regular dos pneus.
Pedro Lemos, instrutor na Escola de Condução Monte Verde, em Leiria, observa que "os formandos estão mais atentos a questões técnicas. Perguntam pela pressão ideal, pela durabilidade dos pneus e mostram interesse genuíno em conduzir de forma mais responsável".
PERSPECTIVAS FUTURAS
O enquadramento regulatório europeu também se prepara para evoluir. A norma Euro 7, com entrada em vigor prevista para 2026, incluirá pela primeira vez limites máximos para emissões de partículas associadas a pneus e travões. A Agência Europeia do Ambiente estima que estas emissões possam representar até 10% da poluição atmosférica urbana em cidades de média e grande dimensão. Os fabricantes que não cumprirem os novos requisitos poderão ver os seus veículos impedidos de serem comercializados no espaço europeu.
Neste contexto, é imperativo encarar o desgaste dos pneus em veículos eléctricos como uma questão sistémica, que atravessa os domínios da engenharia, da saúde pública, da economia circular e da literacia ambiental. A transição energética, se pretende ser plena e coerente, não pode ignorar este problema estrutural.
Afinal, enquanto se discute a eficiência das baterias, o poder de carregamento ou a autonomia por quilómetro, os pneus — silenciosamente — continuam a ser o ponto de contacto entre a tecnologia e o mundo real. E é nesse contacto que reside, muitas vezes, a sustentabilidade de todo o sistema.