"A tropa acaba, mas o eco continua"
No pequeno concelho de Mértola, no Baixo Alentejo, João Pereira, hoje com 42 anos, acorda todos os dias às cinco da manhã. O hábito ficou dos anos em que serviu no Regimento de Comandos da Amadora. Terminou a carreira militar em 2017, com mais de 15 anos de serviço, e desde então tenta adaptar-se a uma vida civil que não o reconhece nem o compreende. "A tropa prepara-te para o combate, mas não te prepara para o depois", desabafa, olhando para as vastidões alentejanas que contrastam com a rigidez das formações militares.
João faz parte de um grupo silencioso: os militares portugueses reintegrados na sociedade civil, que se deparam com obstáculos psicológicos, laborais e sociais que raramente são discutidos. Apesar do Estatuto do Antigo Combatente e da existência de entidades como a Direcção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), muitos destes homens e mulheres sentem-se abandonados por um Estado que os preparou para a guerra, mas não para a paz.
Do combate à invisibilidade
Em Viana do Castelo, Carla Rodrigues, ex-sargento do Exército, hoje trabalha como recepcionista numa empresa de transportes. "Passei de liderar pelotões a marcar reuniões num Outlook que nunca aprendi a usar na tropa", conta com humor amargo. O choque cultural e profissional é uma das maiores barreiras sentidas pelos ex-militares.
Estudos recentes da Universidade do Minho apontam que mais de 63% dos militares desmobilizados não conseguem emprego nos primeiros 12 meses após a saída. E os que conseguem, raramente são integrados em funções equivalentes às suas competências de liderança, logística ou organização operacional.
"Os militares saem com competências técnicas de elevado nível, mas as empresas não reconhecem essas valências. Há um preconceito velado, como se fossem robôs de combate, não profissionais humanos", afirma Miguel Costa, investigador em sociologia militar na Universidade Nova de Lisboa.
Silêncio, trauma e abandono
A componente psicológica é muitas vezes ignorada. A Associação de Veteranos das Forças Armadas Portuguesas (AVFAP) estima que mais de 40% dos ex-militares apresentam sintomas compatíveis com stress pós-traumático (PTSD). No entanto, menos de 15% procuram apoio especializado. O motivo? Estigma e falta de acesso.
"Em Lisboa há apoio. Mas e em Trancoso? Em Paredes de Coura? Em Olhão? Muitos dos nossos camaradas estão isolados, sem acesso a psicólogos com formação para lidar com veteranos", denuncia Filipe Nunes, porta-voz da AVFAP.
A rede de apoio do Instituto da Ação Social das Forças Armadas (IASFA) está sobredimensionada nos grandes centros urbanos, mas escassa no interior do país. Além disso, poucos militares estão informados sobre os seus direitos após a desmobilização. "As reuniões de fim de serviço são mais formais do que informativas", diz Carla.
Há solução?
Nos últimos dois anos, algumas iniciativas tentaram inverter este panorama. O programa "Transitar com Valor", desenvolvido em parceria entre o Exército e o ISCTE, visa criar planos individuais de reinserção socioprofissional. Em 2023, formou 48 militares em áreas como logística, informática e segurança privada. Mas o alcance ainda é limitado.
"A sociedade portuguesa precisa de entender que quem serviu o país com coragem não pode ser tratado como descartável", defende o coronel reformado Manuel Lemos, agora consultor da Liga dos Combatentes. "Reintegrar não é dar esmolas. É dar caminho, dignidade e voz."
Conclusão
O regresso à vida civil para milhares de militares portugueses continua a ser um campo de batalha silencioso. É urgente que a sociedade, o Estado e o sector privado reconheçam o valor humano, profissional e emocional destes homens e mulheres que deram o melhor de si às Forças Armadas. Sem essa mudança de mentalidade, continuaremos a perder heróis no regresso a casa.