A Lei e o Impacto na Vida das Aldeias
Em pleno verão de 2024, numa manhã soalheira em Monsaraz, turistas franceses acordaram assustados com um alerta de fuga de gás no interior de uma reconstruída quinta alentejana. O anúncio prometera serenidade e autenticidade, mas não informava que o alojamento não dispunha de registo oficial na Lei do Alojamento Local (Lei n.º 62/2018). Essa incongruência não é um caso isolado: segundo o relatório de junho de 2025 do Turismo de Portugal, 17,3% dos alojamentos rurais em territórios do Alentejo e do Baixo Alentejo operam sem licença, o que representa cerca de 2.500 dormidas semanais sujeitas a condições imprevisíveis.
Em Idanha-a-Nova (Castelo Branco), Graciano Silva, presidente da Câmara Municipal, lamenta a falta de fiscalização: «Temos apenas três inspetores para cobrir 1.425 km². É humanamente impossível monitorizar todos os anúncios que surgem diariamente no Airbnb e noutras plataformas». Nessa linha, várias casas de taipa e antigos lagares ao longo do Douro, como em Pinhão e Provesende, continuam a receber turistas de olhos fechados para requisitos de segurança e higiene.
Segundo dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), 22% das habitações típicas de pedra na região de Vila Real não cumprem normas de isolamento térmico mínimas, expondo visitantes a extremos de temperatura. Além disso, a falta de acessibilidade – rampas, pisos adequados e casas de banho adaptadas – impede uma verdadeira democratização do turismo rural.
Histórias que Evidenciam o Conflito
Ana Cruz, de 52 anos, é uma dessas pequenas empreendedoras do interior. Em Marvão (Portalegre), herdou uma quinta centenária em ruínas, investiu 20.000 € na recuperação e, em maio de 2024, lançou o espaço no Airbnb sem desconfiar da necessidade de licença. «Achei que bastava preencher um formulário online. Quando a ASAE me notificou de infrações, tive de vender dois porcos e hipotecar parte da herdade», confessa.
Em Sopela, junto a Vila Real, o jovem João Fernandes lançou um projeto comunitário chamado "Aldeias Abertas" em parceria com a UTAD e o Instituto Politécnico de Bragança (IPB). O objetivo era apoiar proprietários na formalização do alojamento rural. «Às vezes, é falta de informação. Muitos associam burocracia a riscos financeiros, quando, na realidade, regularizar pode aumentar o preço médio de reserva em 18%», explica o coordenador do projeto.
Turistas em Risco e Comunidades em Sobressalto
Em meados de março de 2025, um casal de Coimbra, Marta e Luís, fez uma reserva em Foz Côa e deparou-se com uma antiga casa rústica sem aquecimento funcional. «Tinha indicado aquecimento central, mas só havia um fogão a lenha entupido. Passámos quatro noites com temperaturas perto dos 5 °C», conta Marta Fernandes. Esses relatos, amplificados no Portal de Reclamações do Turismo, provocam, em média, uma descida de 30% nas reservas futuras para aquelas zonas.
Do ponto de vista comunitário, o fenómeno empurra os preços do arrendamento para valores que as populações locais dificilmente suportam. Em Vimioso (Bragança), a renda média de casas passou de 350 € em 2023 para 400 € em 2025, segundo a agência IMOBRANCASTELO. Muitos residentes – com idade média de 65 anos – sentem-se «expulsos» do seu próprio território, vendo lares que já foram de família transformados em alojamentos turísticos lucrativos.
Consequências para o Património e o Ambiente
Em terras de Monsaraz, o gestor de património rural Fernando Gonçalves alerta para o desgaste das estruturas: «As pedras movem-se com o sobe e desce constante de hóspedes, e os sistemas hidráulicos tradicionais não aguentam a carga. O resultado são infiltrações e gretas que põem em risco edifícios com 200 anos». Em Vila Nova de Foz Côa, o ICOMOS Portugal (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) publicou um estudo em abril que alerta para a erosão acelerada em trilhos e quintas históricas sujeitas a elevado tráfego turístico.
Caminhos para uma Mudança Sustentável
Entidades como a Confederação do Turismo Português (CTP) e a Associação de Turismo do Alentejo (ATA) têm desenvolvido programas de acção: no projeto "Rural Legal", mais de 200 proprietários assistidos em 2024 receberam apoio jurídico e técnico para formalizar o seu alojamento. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), com suporte financeiro do Portugal 2020, testa uma certificação voluntária de qualidade – o selo "Verde Douro" – já atribuído a seis unidades.
Além disso, a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e a ASAE lançaram, em colaboração com câmaras como as de Peso da Régua e Ponte de Lima, operações surpresa que, entre fevereiro e maio de 2025, inspecionaram 120 imóveis rurais. Dessas visitas, 65% terminaram com recomendações de conformidade e 45% com multas.
Para os viajantes, o Registo Nacional do Turismo Rural (RNTR) e o portal Visit Portugal oferecem listagens verificadas, garantindo alojamentos que cumpram normas. O próprio Airbnb introduziu, em parceria com o Turismo de Portugal, filtros para destacar anúncios regularizados, embora representem apenas 30% do total – um acréscimo de 10 pontos percentuais desde janeiro de 2025.