Empresários no labirinto
Abrir e gerir uma empresa em Portugal continua a ser um exercício de paciência. Para perceber a dimensão do problema, o Instituto +Liberdade ouviu 15 empresários de diferentes sectores e regiões. Nas entrevistas, os principais obstáculos foram o tempo despendido no cumprimento de obrigações legais, a complexidade dos procedimentos e a falta de clareza na informação prestada pelos serviços públicos. O estudo concluiu que são necessárias, em média, 356 horas para abrir uma empresa e 391 horas por ano para cumprir todas as obrigações legais e administrativas. Estes números colocam Portugal entre os países mais burocráticos da Europa, e ajudam a explicar por que razão muitos empreendedores desistem ainda antes de começar.
O relatório foi integrado no Índice da Burocracia 2024, um projeto internacional que mede o peso administrativo em várias economias. Apesar de avanços no campo digital – a plataforma Empresa Online, criada em 2006 e renovada em 2023, permite constituir sociedades pela internet –, os investigadores sublinham que a digitalização não é uma solução milagrosa: os empresários continuam a ser responsáveis por recolher documentação excessiva ou duplicada. Em 2024, Portugal ocupava a 19.ª posição no índice europeu de economia digital (DESI) no que respeita aos serviços digitais para empresas, bem atrás dos países nórdicos.
A burocracia afeta não só quem cria empresas mas também quem precisa de um documento básico. No pico do inverno de 2025, a Loja do Cidadão do Saldanha, em Lisboa, tornou‑se palco de um drama diário. Um repórter da Renascença contou cerca de 150 pessoas em fila às 7 horas da manhã, com o primeiro utente a chegar durante a madrugada. Entre a multidão havia jovens dinamarquesas que, habituadas a temperaturas de dois ou três graus, se admiravam apenas das filas intermináveis para tratar de documentos.
Mais atrás, Ester da Silva, residente em Lisboa, esperava uma senha para alterar a morada nas Finanças. Era o segundo dia que ali estava e descrevia a experiência como extenuante: “tem de vir muito cedo e ficar até às nove da manhã”. Ao seu lado, Vítor Silva guardava lugar para uma amiga idosa e apontava a falta de atendimento adequado: “há muita burocracia e muitas vezes o atendimento não é dos melhores. Muitos nem sequer falam português… isto é lamentável”.
As histórias repetem‑se noutras repartições. No Serviço de Finanças da Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, Pedro Alves, imigrante brasileiro, relatava que fora aconselhado a chegar às três da manhã para tratar da alteração de morada dos filhos. “Cheguei às cinco e já havia pessoas”, contou, acrescentando que esperava que a era digital tivesse chegado aos serviços públicos. Na Conservatória dos Registos Centrais, Paulo Campos, residente em Setúbal, queixava‑se da falta de funcionários e de greves que atrasavam ainda mais o atendimento. Para conseguir o código de acesso ao portal da nacionalidade, teve de voltar várias vezes.
Embora Portugal tenha investido na digitalização dos serviços públicos, o fosso entre a intenção e a realidade é evidente. A plataforma Empresa Online 2.0 introduzida em 2023 permite assinar digitalmente o pacto social e oferece novas formas de pagamento, mas muitos procedimentos ainda exigem deslocação presencial. Empresários que optam por nomes personalizados têm de solicitar um Certificado de Admissibilidade junto do Registo Nacional de Pessoas Colectivas, o que atrasa a abertura de empresas. A abertura de uma conta bancária empresarial, necessária para depositar o capital social, é outro calvário: bancos exigem documentação extensa, os requisitos variam e o processo pode demorar semanas. Nos casos de recusa, a lei impede que o banco forneça explicações, deixando o empreendedor sem alternativa.
Para os cidadãos comuns, o cenário não é muito diferente. A necessidade de apresentação de documentos em duplicado, a falta de interoperabilidade entre plataformas e a exigência de senhas presenciais explicam as filas nas repartições. Apesar de existirem serviços como a Chave Móvel Digital e os Espaços Cidadão espalhados pelo país, muitas mudanças simples – como a alteração de morada ou o pedido de nacionalidade – continuam a exigir carimbos e assinaturas físicas. O resultado é um sistema que esgota tempo e paciência, penalizando sobretudo quem vive longe dos centros urbanos ou tem horários de trabalho rígidos.
Portugal anuncia periodicamente uma “guerra à burocracia”, mas o labirinto de papéis persiste. Os testemunhos de utentes que madrugam à porta das Lojas do Cidadão e os dados que mostram centenas de horas perdidas pelos empresários demonstram que a simplificação administrativa ainda está por cumprir. Investir em interoperabilidade entre serviços, reduzir a documentação solicitada e reforçar o atendimento digital com alternativas acessíveis são medidas essenciais. Mais importante ainda é colocar o cidadão no centro: nenhum Estado digno pode exigir que uma idosa espere horas ao frio para obter uma senha ou que um empreendedor afunde semanas de trabalho em formulários redundantes. Enquanto isso não acontecer, muitos continuarão perdidos na burocracia.