Um sistema que adia a vida
Portugal conta actualmente com cerca de 2.000 juízes para todo o país, o que representa 21 magistrados por cada 100 mil habitantes, segundo a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP). A média europeia é de 28. A escassez é agravada por um sistema informático com falhas estruturais. O CITIUS, plataforma digital dos tribunais, sofre constantes interrupções, dificultando o trabalho de advogados e juízes. Em 2023, a Ordem dos Advogados apresentou uma queixa formal ao Conselho Superior da Magistratura, alegando "colapso funcional nos sistemas de agendamento e notificação".
Para além da infraestrutura obsoleta, existe uma cultura de formalismo jurídico que torna os procedimentos mais pesados e arrastados. “Um requerimento que podia ser despachado em 10 dias leva 4 meses. As notificações electrónicas por vezes nem chegam, ou chegam atrasadas. É como viver num tempo paralelo”, explica o advogado Gonçalo Mira, com escritório em Beja.
Na Universidade do Minho, o Centro de Estudos Sociais levou a cabo, em parceria com o Observatório Permanente da Justiça, um inquérito que envolveu 1.200 pessoas afectadas por processos judiciais longos. Os dados revelaram que 68% dos inquiridos relataram sintomas de ansiedade crónica, 45% desenvolveram episódios de depressão e 38% sofreram perdas patrimoniais irreversíveis durante a vigência do processo. O estudo apontou ainda que 52% dos entrevistados evitariam recorrer à justiça novamente, mesmo que lesados.
Entre as histórias recolhidas pelo estudo está a de Teresa Falcão, de Moura, no Alentejo. Herdou um pomar de citrinos do pai, mas o processo de transmissão de propriedade — contestado por um tío afastado — já vai em 16 anos. Hoje, metade das árvores está morta e a outra metade foi invadida por silvas. “Aquilo que era para ser um novo começo para a minha família tornou-se num poço sem fundo. E o mais revoltante é que a culpa não é nossa”.
Em Faro, um casal de pequenos empresários viu a falência da sua loja ser agravada por um processo de despejo que levou 7 anos a ser resolvido. “Perdemos tudo à espera de uma decisão. E quando veio, já não havia nada para recuperar”, afirma Manuel Rocha, ex-proprietário da loja "Casa do Sul".
A ministra da Justiça, Rita Júdice, anunciou em Outubro de 2023 um novo pacote de 60 milhões de euros destinado à modernização dos tribunais, com prioridade para a transição digital, simplificação processual e contratação de magistrados. Contudo, fontes internas admitem que os resultados concretos só serão visíveis a partir de 2027. Segundo o relatório da Inspeção-Geral dos Serviços de Justiça (IGSJ), publicado em fevereiro de 2024, cerca de 31% dos investimentos anteriores não foram sequer executados, o que gera desconfiança no terreno.
Uma urgência nacional silenciada
O problema da morosidade judicial tem consequências profundas e atravessa gerações. É uma ferida social que corrói confianças, destrói património, divide famílias e enfraquece a credibilidade do Estado de Direito. Em várias aldeias de Trás-os-Montes, ainda se ouve a expressão popular: "Quem vai ao tribunal perde duas vezes" — um reflexo amargo da percepção de impotência e cansaço acumulado.
A morosidade gera também desigualdade de acesso à justiça. Quem tem recursos, paga melhores advogados, move influências, recorre a perícias privadas. Quem depende da justiça gratuita ou da defensoria pública, fica entregue à espera. O bastonário da Ordem dos Advogados, Fernando Pinto, tem reiterado que “o acesso à justiça não pode ser uma questão de carteira”.
Chegou o momento de a sociedade portuguesa encarar este drama com seriedade. Não se trata apenas de resolver casos em atraso. Trata-se de devolver dignidade e futuro a quem tem vivido anos na penumbra da espera. É necessário garantir que os tribunais não se transformam em arenas de frustração. Enquanto não houver uma verdadeira reforma judicial com calendários vínculativos, digitalização eficaz, orçamentos executados e reforço humano nos tribunais, continuarão a existir milhares de Marias, Jorges e Teresas, condenados a envelhecer sem justiça e sem paz.