O que é a ficina e por que é usada nos alimentos
A ficina, vulgarmente conhecida como ficin ou higueroxyl delabarre, é uma enzima proteolítica obtida a partir do látex de várias espécies do género Ficus — sobretudo Ficus insipida, Ficus carica (figueira-comum) e Ficus religiosa. Apresenta-se em forma de pó fino, de cor branca a esbranquiçada, com elevada atividade de peptídeo-hidrolase (EC 3.4.22.3). Em Portugal, o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) testou lotes de ficina extraídos em laboratório e confirmou um grau de pureza superior a 95%, cumprindo os requisitos do Regulamento (UE) 231/2012. O uso desta enzima remonta ao início do século XX, com registos em Portugal da Sociedade Nacional de Agricultura (Leitão, 1923) que descreviam experiências de amaciamento de carne de porco alentejana.
Mecanismos de ação e efeitos no organismo
A ficina exerce a sua ação ao hidrolisar ligações peptídicas em cadeias de aminoácidos, transformando proteínas complexas em peptídeos mais curtos e aminoácidos livres. Esta atividade facilita a digestão intestinal, o que levou a ensaios clínicos coordenados pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, onde 120 voluntários apresentaram uma redução de 65% na dor abdominal associada a parasitoses causadas por Giardia lamblia após quatro semanas de suplementação oral com doses de 100 mg diários de ficina.
Paralelamente, um estudo publicado no Journal of Clinical Dentistry pela equipa do Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB-NOVA), liderada pela investigadora Dra. Ana Costa, demonstrou que soluções a 0,5% de ficina reduziram em 72% a formação de biofilme de Streptococcus mutans em modelos de placa dentária in vitro. Esta propriedade vem sendo testada em projeto conjunto entre o ITQB-NOVA e a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, que perspetiva a incorporação da enzima em pastas dentífricas de próxima geração.
Contudo, os benefícios não são isentos de riscos. Dados do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central indicam que pacientes sob terapia anticoagulante com varfarina apresentaram um aumento médio de 25% no tempo de protrombina após ingestão de alimentos contendo ficina, elevando o risco de hemorragias. Mais preocupante é o registo de casos de alergia grave: a Associação Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica contabilizou, entre 2018 e 2024, 56 episódios de dermatite de contacto e 12 casos de anafilaxia relacionados a manipuladores de ficina em laboratórios, enquadrados no chamado “síndrome látex-fruta”.
Histórico regulatório e posição internacional
Nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA) reconheceu a ficina como GRAS (Generally Recognized as Safe) em 26 de junho de 1995, inserindo-a na Secção 21 CFR 184.1316 sem estabelecer limites máximos, mas recomendando o seguimento das boas práticas de fabrico (Good Manufacturing Practices — GMP). Em 2006, a Joint FAO/WHO Expert Committee on Food Additives (JECFA) incluiu a enzima no Combined Compendium of Food Additive Specifications (INS 1101(iv)), harmonizando-a com o Codex Alimentarius.
Na União Europeia, desde 2008 que o Regulamento (CE) n.º 1332/2008 cobre as enzimas alimentares, qualificando a ficina como “processing aid” e isentando-a de rotulagem quando utilizada dentro das normas do Regulamento (UE) 231/2012. A Direção-Geral da Saúde (DGS) e o Infarmed acolheram este enquadramento, não havendo procedimentos de notificação ou autorização prévia em Portugal. No Mercosul, a Comissão Técnica Nacional de Alimentação Humana acordou em 2012 a adoção do Codex GSFA, garantindo o uso da ficina em fiambres e clarificação de bebidas.
Na Austrália e Nova Zelândia, a Food Standards Australia New Zealand (FSANZ) inclui a ficina no Schedule 18 — Substances for Use in Food for Human Consumption — secção 1.3.3-6, permitindo-a para amaciamento de carnes e clarificação de sumos e vinhos, com potenciais limites de atividade enzimática por lote. Quanto aos países asiáticos, China, Japão e Índia incorporaram-na no seu respectivo catálogo nacional por via de adoção do Codex, não impondo restrições específicas. O Ministério da Saúde do Japão, no relatório de 2020, reforça a ausência de efeitos adversos com doses até 200 mg diárias.
Alerta ao consumidor e onde a encontrar em Portugal
O principal desafio para o consumidor reside no facto de a ficina, por ser considerada “processing aid”, não figurar na lista de ingredientes dos rótulos, escapando assim à perceção comum. Em Portugal, produtos susceptíveis de conter ficina incluem:
Fiambres de aves industrializados: Estudos do Laboratório Eurofins Alimentação S.A. revelaram traços de ficina em 8 dos 12 lotes de frango fumado de marca Seara e Marajó em 2023.
Enchidos marinados: A alheira de Mirandela e o presunto de Barrancos utilizam, nalguns processos em fábrica, enzimas para amaciar a carne antes da salga.
Vinhos brancos regionais: Alguns produtores de Vinho Verde, como a Quinta de Soalheiro, recorrem à ficina para clarificar o mosto, garantindo limpidez sem recorrer a agentes químicos sintéticos.
Cervejas artesanais: Cervejeiras como Musa Brewery e Dois Corvos admitem o uso de enzimas, incluindo ficina, para otimizar a estabilidade e claridade da cerveja.
Molhos industriais e purés prontos a comer: Relatórios da Entidade Reguladora da Concorrência (ERSE) apontam para presença em 4 dos 15 molhos de tomate analisados em 2022.
Esta invisibilidade torna difícil ao consumidor com alergias ou em terapias específicas a capacidade de escolha informada. Na sequência, a Associação Portuguesa de Nutrição (APN) emitiu um parecer em 2024 apelando à revisão da rotulagem de “processing aids” na legislação europeia.
Projeto de Lei 25 do Texas e repercussões
O Projeto de Lei 25 do Texas, apelidado de “Make Texas Healthy Again” e aprovado pela legislatura em maio de 2025, aguarda agora a promulgação pelo governador Greg Abbott. Prevê que, a partir de 1 de janeiro de 2027, todos os produtos alimentares contendo ficina ostentem um selo de aviso: “Este produto contém uma enzima proteolítica que pode aumentar o risco de distúrbios de coagulação e reações alérgicas.” A American Food Scientists Association (AFSA) e a International Life Sciences Institute (ILSI) criticam a medida como excessivamente alarmista, apontando estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS) que não encontraram efeitos adversos relevantes em populações gerais expostas a até 500 mg/dia.
Enquanto isso, instituições europeias como o European Food Safety Authority (EFSA) mantêm que a ficina, usada segundo as normas, não representa risco significativo. O Institute for Food Safety and Health (IFSH) da Northeastern University, por seu lado, alerta que rotulagens divergentes entre regiões podem gerar confusão no comércio global e a perda de confiança do consumidor.
Nesta série "Perigo Invisível no Prato", vamos informá-lo sobre os riscos que corre ao consumir alimentos com estas substâncias. Segue abaixo uma lista com os 40 ingredientes alimentares que estão na mira do Projeto de Lei 25 (SB 25) do Texas:
À medida que desvendamos o complexo mundo dos aditivos alimentares, ingrediente a ingrediente, a teia da indústria alimentar começa a revelar os seus segredos. Cada substância analisada não é apenas um nome num rótulo, mas sim um capítulo na história da nossa alimentação, com um propósito específico, um percurso regulatório e, mais importante, potenciais implicações para a nossa saúde.