O butil-hidroxianisole, mais conhecido pela sigla BHA, é um antioxidante sintético que a indústria alimentar pôs ao serviço das prateleiras desde meados do século XX, preservando óleos, gorduras e produtos desidratados contra o ranço. Feito a partir de 4-metoxifenol e isobutileno, essa substância cerosa entrou em cena em 1947, no rastro das inovações pós-guerra, quando laboratórios como o da Monsanto Company, nos Estados Unidos, patentearam o processo de produção do aditivo, para garantir maior durabilidade ao stock alimentar militar e civil .
Mas voltemos a Portugal. É nos cereais à hora do desjejum, nas batatas fritas de pacote — as preferidas das juntas de freguesia em tardes de convívio —, nas margarinas que ensopam tostas na tasca da esquina e até em bolachas de pacote que o BHA se infiltra. Uma análise recente do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), divulgada em abril de 2025, encontrava níveis de BHA que rondavam os 110 mg/kg em snacks salgados, perto do limite máximo de 200 mg/kg autorizado pela Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) .
“Antioxidante” é com eles, mas e para nós?
A principal razão para usar BHA é simples: estacionar a degradação das gorduras. Em produtos com elevado teor lipídico — pense numa batata frita industrial, que por dentro pode passar dos 30% de gordura —, o ranço não só azeda o sabor, como forma compostos tóxicos, como hidroperóxidos, que na boca e no organismo incomodam as papilas gustativas e podem afectar a saúde a longo prazo. Assim, combinam-se BHA (E320) e BHT (E321) ou galatos (E310 a E312) para criar uma barreira química contra o oxigénio.
No entanto, por detrás dessa “manta de retorcida ciência” há controvérsias. O National Toxicology Program (NTP) dos EUA expôs em relatórios de 1982 e 1995 que ratinhos alimentados com 0,5% de BHA na dieta desenvolveram pólipos e tumores benignos no estômago. Já os hamsters, segundo um estudo da University of Ohio, apresentaram lesões hepáticas após ingestão continuada de doses elevadas . Visto isto, o National Institutes of Health (NIH) classifica-o como “razoavelmente antecipado como carcinogénico para humanos” — mas só “razoavelmente”, já que testes directos em pessoas são eticamente complexos .
Estatísticas que pesam na balança
Em 2023, a Agência Portuguesa do Medicamento e Produtos de Saúde (INFARMED) contabilizou 47 notificações de reações alérgicas associadas a aditivos sintéticos, das quais 12 atribuídas a produtos com BHA detectado em análises laboratoriais.
Segundo a EFSA, o consumo médio de BHA na UE situa-se nos 0,1 mg/kg de peso corporal por dia — cinco vezes abaixo do ADI (1,0 mg/kg/dia) . Contudo, num estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge publicado em janeiro de 2025, 18% dos inquiridos apresentavam ingestões diárias superiores a 0,5 mg/kg, principalmente jovens de 15 a 25 anos que recorrem a snacks como fonte rápida de energia.
Apesar destes dados, não há consenso completo. A EFSA, após reavaliar em 2011, considerou o BHA seguro até 1,0 mg/kg peso corporal/dia, sem sinais de danos no ADN . Já o International Agency for Research on Cancer (IARC) mantém o olhar cauteloso, enquadrando-o num grupo 2B (possível carcinogénico) quando combinado com outros fenóis sintéticos.
Quem regula o quê - e porquê
O BHA tem sido alvo de debates entre reguladores:
Estados Unidos (FDA): entrou para a lista GRAS (“Generally Recognized as Safe”) em 1958, com um teto de 0,02% em gorduras e óleos. Em 2018, após pedido conjunto da International Food Additives Council, o FDA manteve a autorização, mas pediu mais estudos sobre efeitos endócrinos.
União Europeia (EFSA): mantém-o como E320 em categorias como produtos de padaria e cereais processados, mas restringe o uso em alimentos infantis (Regulamento (UE) 2018/1165).
Canadá (Health Canada): lista-o como conservante permitido sem restrições específicas, mas incluiu-o em revisão prioritária para 2026, após relatórios do Environmental Defense Canada apontarem para riscos de bioacumulação em organismos aquáticos .
Mercosul (Argentina, Brasil, Uruguai): segue o Código Alimentar Argentino, que aceita até 200 mg/kg em gorduras.
China (GB2760-2014): alinha-se ao Codex GSFA, permitindo-o em produtos de charcutaria até 150 mg/kg.
Austrália/Nova Zelândia (FSANZ): autopublicou em 2019 uma revisão que mantém o limite em 200 mg/kg, mas sugere monitorização reforçada.
Japão (Food Sanitation Law): esclareceu em 2022 que não proíbe o BHA, respondendo a partidos políticos que o queriam banir, mas impôs contranormas de rotulagem.
Em Portugal, a ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) fiscaliza-se o cumprimento de limites máximos estabelecidos pelo Regulamento (CE) 1129/2011. Desde 2020, entrou em vigor a exigência de declarar E-números visíveis nas embalagens, o que tem levado pequenos produtores a reformular receitas, recorrendo a antioxidantes naturais, como extratos de rosmarinho ou tocoferóis.
Onde anda o BHA entre nós
Não pense que o BHA só surge em pós de batata: pesquise nos rótulos de:
Cereais matinais (ex.: Corn Flakes da Kellogg’s) — até 120 mg/kg para manter o flocos estaladiços.
Snacks de batata e milho (ex.: Lay’s e Doritos) — a mistura de BHA e BHT atinge 150 mg/kg numa embalagem standard de 200 g.
Margarinas (ex.: Becel e Flora) — com 0,015% de BHA na fórmula para prolongar validade até 6 meses.
Gomas de mascar (ex.: Trident) — 90 mg/kg no recheio, segundo teste de 2024 do IKF — Instituto de Certificação e Investigação Alimentar.
Carnes processadas (ex.: fiambre de frango e salpicão italiano) — combinam BHA com nitritos, formando um coquetel químico que aguenta até 12 meses de prateleira .
O alerta mais recente ao consumidor surge no Texas, graças ao Projeto de Lei 25 (SB 25), “Make Texas Healthy Again”, que espera sanção governamental. Entrará em vigor a 1 de janeiro de 2027 e impõe legendas de aviso em produtos que contenham BHA, entre outros aditivos tidos como nocivos pela UE, Reino Unido, Canadá ou Austrália . Esta medida pretende inspirar outras regiões dos EUA, provocando uma “corrida às rotulagens” e, potencialmente, novas restrições.
Porque devemos abrir os olhos - e a boca
Sejamos francos: o nosso dia a dia passa por gerações instantâneas de calorias e aromas. No jantar, um saco de pipocas para o filme; ao lanche, biscoitos amanteigados; ao pequeno-almoço, cereais que estalam ao toque do leite. São prazeres que vêm embalados com promessas de frescura e sabor. Mas quando lemos o rótulo e nos deparamos com “E320”, há que questionar: quantas moléculas de BHA vou engolir para manter o crocante?
A verdade é que, embora as autoridades digam que estamos dentro de margens seguras, o efeito cumulativo a longo prazo ainda é uma incógnita — sobretudo para quem, como 30% dos portugueses, tem uma dieta rica em processados, conforme o Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição 2022 do DGS . E logo o BHA, que aumenta a atividade de enzimas hepáticas (o citocromo P450), potencializa interacções com medicamentos, como estatinas e anticoagulantes, alerta a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia.
Portanto, não é drama para exorcizar todas as prateleiras, mas é chamada de atenção para ler rótulos, escolher alternativas que recusem sintéticos e exigir mais transparência às marcas. Se o Texas já vai colocar etiquetas de advertência, fica o exemplo: olhar para o carrinho de compras como quem lê um livro, perceber o que se come e saber que cada “E” traz em si um capítulo de química, regulações e possíveis riscos.
Nesta série "Perigo Invisível no Prato", vamos informá-lo sobre os riscos que corre ao consumir alimentos com estas substâncias. Segue abaixo uma lista com os 40 ingredientes alimentares que estão na mira do Projeto de Lei 25 (SB 25) do Texas:
À medida que desvendamos o complexo mundo dos aditivos alimentares, ingrediente a ingrediente, a teia da indústria alimentar começa a revelar os seus segredos. Cada substância analisada não é apenas um nome num rótulo, mas sim um capítulo na história da nossa alimentação, com um propósito específico, um percurso regulatório e, mais importante, potenciais implicações para a nossa saúde.