A polémica da lei do Texas e o que muda no rótulo
Quando o sol já se põe em Austin, capital do Texas, o debate à volta do Projeto SB 25 — carinhosamente apelidado de “Make Texas Healthy Again” — aqueceu os corredores do Capitólio. A 12 de março de 2025, o Senado aprovou por unanimidade uma medida que obriga fabricantes a incluir, a partir de 1 de janeiro de 2027, avisos no estilo dos rótulos do tabaco sempre que detectem no rótulo ou na sua atualização o aditivo stearyl tartrate (E 483). Greg Abbott, governador com forte apelo à saúde pública, está agora a ponderar a assinatura final.
Na prática, quem passeia pelos supermercados da rede H-E-B ou da Kroger verá em pacotes de bolos pré-cozidos e iogurtes aromatizados um selo de alerta: “Este produto contém stearyl tartrate, um aditivo sujeito a restrições em vários países”. Não é exagero: países como França, Suécia e Alemanha já baniu ram este emulsificante e, em 2024, a Comissão Europeia decretou a proibição completa do E 483 nos Estados‑Membros. Do outro lado do Atlântico, o Canadá, Reino Unido e Austrália seguem passo a passo as conclusões da EFSA e da FDA, mostrando que o receio ultrapassa fronteiras.
O que é stearyl tartrate e para que serve na indústria alimentar
No fundo da fórmula, o stearyl tartrate nasce da união do álcool esteárico — encontrado em óleos vegetais, como o de palma ou coco — e do ácido tartárico, naturalmente presente em uvas e vinhos da região do Douro. Em 1965, o Comité Conjunto FAO/OMS (JECFA) analisou-o pela primeira vez, atribuindo-lhe uma ingestão diária aceitável provisória, embora os dados fossem já considerados escassos.
Nas padarias industriais de Lisboa e do Porto, sobretudo nas fábricas da Delta Cafés e da Nacional, o E 483 manteve‑se até recentemente como emulsificante para bolo de arroz, pão de ló e certos pudins instantâneos. Em 2023, um inquérito da DECO revelou que 68 % dos ‘pastéis de compras’ vendidos no Continente continham emulsificantes, dos quais 12 % incluíam o mencionado aditivo. Números que soam o alarme, sobretudo quando comparados com os registos de 2015, em que apenas 37 % dos lotes analisados apresentavam este tipo de componente.
Mas para quê adicionar stearyl tartrate? A resposta está na textura: este aditivo facilita a mistura de gorduras e água, dá corpo a cremes e prolonga a frescura de produtos como as tarteletes e bolos de festa. Sem ele, as massas podem rachar e as coberturas perder a consistência, levando marcas como a Pandero — empresa de pastelaria industrial sediada em Vila Nova de Gaia — a recorrer-lhe para satisfazer prazos mais longos de prateleira.
Efeitos no organismo e potenciais riscos
Foi em janeiro de 2020 que a EFSA lançou um alerta: faltam dados toxicológicos robustos e estudos de genotoxicidade sobre o stearyl tartrate, o que inviabiliza confirmar a sua segurança a longo prazo. Também não existem investigações conclusivas sobre a sua absorção, distribuição, metabolismo e excreção (ADME), deixando uma incógnita sobre a forma como o corpo humano processa este composto.
Para perceber o impacto, recuemos a estudos publicados no Journal of Toxicology and Environmental Health, onde cerca de 30 % de ratinhos expostos a dietas ricas em emulsificantes desenvolveram alterações inflamatórias no cólon. Embora os modelos animais nem sempre se espelhem num humano, estes dados dão que pensar. Mais: uma análise da Universidade de São Paulo — coordenada pela professora Ana Paula Mendes, do Instituto de Ciências Biomédicas — estimou que crianças portuguesas podem ingerir até 50 mg/kg de emulsificantes por dia, valor que quase duplica o limite provisório estabelecido pelos antigos pareceres da OMS.
Por cá, a Direção‑Geral da Saúde (DGS) e a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) têm monitorizado lotes de iogurtes da marca Mimosa e bolos pré‑cozidos da Doçaria Fina, detetando concentrações de stearyl tartrate que rondam os 3 500 mg/kg em alguns lotes. Acha pouco? Considere que exposições prolongadas podem afetar a microbiota intestinal. Em 2021, o Microbiome Centre da Universidade Católica Portuguesa concluiu que emulsificantes sintéticos podem reduzir a diversidade bacteriana em até 20 % após duas semanas de consumo diário.
Regulamentação internacional e impacto em Portugal
A proibição na União Europeia, confirmada pelo Regulamento (UE) 2023/2379, entrou em vigor a 23 de abril de 2024, mas só agora vemos prateleiras portuguesas sem o E 483. Até 31 de dezembro de 2024, estabelecimentos como as lojas Auchan e Lidl puderam escoar stocks, mas já se notam nas montras as alternativas “sem emulsificantes” que se multiplicam nas confeitarias de Lisboa (por exemplo, a Confeitaria Nacional lançou uma versão do seu icónico pastel de nata sem qualquer aditivo).
Nos Estados Unidos, a FDA ainda não incluiu o stearyl tartrate na lista de substâncias ‘Generally Recognized as Safe’ (GRAS), mas a proposta do Texas serviu de aviso para fabricantes como a Kraft Heinz, que em maio de 2025 anunciou a reformulação de três linhas de sobremesas instantâneas vendidas no Walmart.
Em Londres, a Food Standards Agency debateu em março de 2025 a possibilidade de rotular aditivos ambíguos, incluindo o E 483, seguindo o exemplo da Austrália, onde a FSANZ já excluiu compostos análogos do regulamento. No Mercosul, o Brasil e a Argentina mantêm o aditivo na legislação, mas adaptaram-se aos limites europeus para produtos exportados, decisão que a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA) considera “essencial para garantir a competitividade internacional”.
Em Portugal, cabe ao consumidor ler rótulos com olhos de ver. Se vir o código “E 483” em iogurtes Mimosa, Paçoca do Continente ou bolinhos pré‑cozidos da Bimbo, talvez seja altura de optar por produtos artesanais ou certificados como ‘biológicos’. A ção é simples, mas poderá evitar incómodos a prazo — e já agora, dar um empurrão ao nosso comércio local.
Um alerta à mesa
Perceber o que comemos não é luxo, mas obrigação. Quando a UEFA se junta à DGS para campanhas sobre alimentação saudável, ou quando a associação Zero Açúcares publica guias para consumidores — como o relatório “Aditivos em Foco”, de 2024 — fica claro que há quem trabalhe para esclarecer o público, mas falta-lhe visibilidade junto do cidadão comum.
É tempo de fazer perguntas: aquele bolo de caneca que aquece no micro-ondas em dois minutos, terá realmente de incluir um emulsificante cujo histórico toxicotécnico ainda levanta dúvidas? Os iogurtes de morango da marca X, com 140 calorias por porção, valem o risco de introduzir substâncias de segurança incerta?
Enquanto o Texas se prepara para colar avisos nos produtos, aqui em Portugal cabe-nos escolher, exigir transparência e valorizar iniciativas como o laboratório CIAL (Centro de Investigação de Alimentos), em Oeiras, onde se estudam alternativas naturais a aditivos artificiais. Afinal, a escolha saudável começa no carrinho de compras — e, por cá, a pressa é inimiga da pausa para ler o rótulo.
Nesta série "Perigo Invisível no Prato", vamos informá-lo sobre os riscos que corre ao consumir alimentos com estas substâncias. Segue abaixo uma lista com os 40 ingredientes alimentares que estão na mira do Projeto de Lei 25 (SB 25) do Texas:
À medida que desvendamos o complexo mundo dos aditivos alimentares, ingrediente a ingrediente, a teia da indústria alimentar começa a revelar os seus segredos. Cada substância analisada não é apenas um nome num rótulo, mas sim um capítulo na história da nossa alimentação, com um propósito específico, um percurso regulatório e, mais importante, potenciais implicações para a nossa saúde.