O que é o diacetil e para que serve?
Quando falamos em diacetil, falamos naquele aroma intensamente amanteigado que nos transporta para a pipoca acabada de estourar ou para uma fatia generosa de manteiga sobre a torrada quente. Quimicamente designado por butane-2,3-dione (fórmula (CH₃CO)₂), o diacetil existe de forma natural em queijos como o Brie de Meaux, no Chardonnay das vinhas do Douro e até em cervejas artesanais que passam por fermentação maloláctica, como as produzidas pela Cervejeira Letra (Vila Nova de Gaia). No entanto, foi a indústria alimentar a partir dos anos 1950 que descobriu ser possível reproduzir este composto em laboratório e adicioná-lo em grandes quantidades a alimentos industrializados. O objetivo era simples: oferecer um “gosto a manteiga” constante, sem depender de manteiga verdadeira, cujo preço e sazonalidade podiam oscilar conforme colheitas e cotações do mercado.
Há mais de sete décadas, empresas norte-americanas como a Conagra Brands popularizaram o diacetil nas pipocas de micro-ondas, com marcas como Act II e Orville Redenbacher’s a encher o mercado. Em Portugal, a Vaqueiro e a Becel seguintes trouxeram a solução aos sucedâneos de manteiga, apelidando-a de “aroma natural de manteiga”. A partir daí, o ingrediente ganhou lugar em molhos, batatas fritas de pacote (Lays, Ruffles), bolachas recheadas e outros snacks com promessa de sabor mais “gordo” e “entalado na memória do consumidor”.
Efeitos no organismo humano e riscos
O diacetil é, para efeitos de consumo oral, considerado seguro pelo FDA (Food and Drug Administration) dos EUA e pela Comissão Europeia sob o estatuto GRAS (Generally Recognized as Safe). Em Portugal, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) baseia-se em estudos da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) que não apontam riscos significativos quando as quantidades seguem as práticas de fabrico reconhecidas. Ainda assim, um aviso não cai mal: a inalação dos vapores no processo de fabrico revelou-se tóxica.
Em 2002, trabalhadores da fábrica da Popcorn, Inc. em Missouri começaram a apresentar sintomas de bronquiolite obliterante—uma afeção respiratória grave e irreversível, vulgarmente conhecida por “popcorn lung”. A Clínica Mayo, em Rochester (Minnesota), reportou que, entre 2000 e 2010, mais de 30 operários desenvolveram lesões pulmonares severas após meses de exposição contínua aos fumos de diacetil sem proteção adequada. Sintomas como tosse persistente, aperto no peito e falta de ar tornaram-se companhia diária, levando três deles a necessitarem de transplante pulmonar. O NIOSH (National Institute for Occupational Safety and Health) estima que concentrações superiores a 0,01 ppm no ar, durante 8 horas de trabalho, possam causar irritação brônquica e danos crónicos.
Para o consumidor doméstico, o risco é muito inferior: o processo de digestão restauraliza grande parte do composto, e o diacetil misturado com gorduras reais ou vegetais reduz a quantidade de moléculas livres que chegarão ao sistema respiratório. Ainda assim, convém andar com o “olho vivo” ao ver o rótulo: se no final da lista de ingredientes aparecer “aroma”, “aroma natural de manteiga” ou “flavour”, é sinal de que o nosso corpo vai receber diacetil – ou outros congéneres químicos, como o acetil propionil, cuja toxicidade é comparável.
Regulamentação internacional e casos de estudo
Estados Unidos: o FDA reconheceu o diacetil como GRAS em 2005 (21 CFR 184.1278), sem propor limites estritos além das boas práticas de fabrico. No entanto, o Projecto de Lei SB25 do Texas ("Make Texas Healthy Again"), aprovado em abril de 2025, pretende que a partir de 1 de janeiro de 2027 todos os produtos alimentares contendo diacetil, acetil propionil ou outras substâncias sinalizadas em países como a UE, Canadá, Austrália e Reino Unido exibam um aviso de saúde nos rótulos. O texto, que aguarda a assinatura do governador Greg Abbott, revelou equívocos em algumas substâncias listadas, segundo denúncia da AP News e do Washington Post, mas reforça a pressão sobre fabricantes e retalhistas.
União Europeia: a EFSA iniciou em 2012 um programa de reavaliação de aditivos autorizados antes de 2009. Em 2016, proibiu o diacetil em líquidos de cigarros eletrónicos (Diretiva 2014/40/EU), mas manteve-o como flavorizante alimentar, ao contrário do Reino Unido, que em 2020 limitou a concentração máxima em 25 mg/kg em snacks salgados. O grupo de investigação do Instituto Federal de Avaliação de Riscos da Alemanha (BfR), liderado pelo Dr. Markus-Michael Reich, publicou um estudo em 2023 que concluiu que a exposição oral a níveis convencionais não ultrapassa os valores de referência seguros.
Mercosul/Brasil: a ANVISA, em sintonia com o Regulamento Técnico Mercosul (Resolução GMC nº 10/2006 e Portaria nº 354/2006), permite o diacetil em quantidades definidas para cada categoria de alimentos. Relatório interno de 2024 que envolveu o Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Universidade de São Paulo (USP) concluiu que 95% das amostras de pipocas de micro-ondas no mercado brasileiro contêm entre 12 e 18 mg/kg de diacetil, dentro dos limites estipulados, mas com variação significativa entre marcas.
Austrália e Nova Zelândia: o FSANZ incluiu o FEMA 2370 (codificação do diacetil no FEMA GRAS) na cláusula 1.3.1 do Código Alimentar sem restrições adicionais, seguindo recomendações do JECFA (Joint FAO/WHO Expert Committee on Food Additives). Estudos de 2022 da Universidade de Melbourne não encontraram riscos emergentes, mas sugeriram monitorização periódica das indústrias de snack e laticínios.
Ásia: Japão, Coreia do Sul e China aderem ao Codex Alimentarius. Em 1998, o JECFA avaliou o diacetil e considerou-o seguro, mas, em 2021, a Autoridade de Segurança Alimentar da China (CFSA) recomendou reduzir o uso em produtos infantis e em alimentos para grupos vulneráveis, citando um estudo da Universidade de Tóquio que apontou alterações histológicas em ratos expostos a doses 500 vezes superiores às encontradas em pipocas de micro-ondas.
Onde encontrar diacetil em Portugal e como ler os rótulos
Em Lisboa, no Continente, no Pingo Doce ou no Lidl, basta olhar para as prateleiras de pipocas de micro-ondas (Act II, Pop Secret, Loja das Cerejas) ou margarinas (Vaqueiro, Becel) para descobrir rótulos que indiquem “aroma de manteiga” ou, simplesmente, “flavour”. Nas máquinas de vending da Universidade do Porto, há snacks salgados (Pringles, Ruffles) recheados com uma pitada artesanal de diacetil.
O Instituto Português da Qualidade (IPQ) recomenda que o consumidor verifique sempre:
A lista completa de ingredientes, procurando termos como “aroma” ou “flavour”.
Informação nutricional: teor de gorduras saturadas e monoinsaturadas pode indicar maior quantidade de flavorizantes ligados.
Origem do produto: alimentos importados dos EUA e Japão tendem a ter concentrações mais elevadas de diacetil comparativamente aos europeus.
Por que devemos estar atentos?
O diacetil pode parecer inofensivo quando associado a gostos familiares e confortáveis, mas a história da sua introdução na indústria alimentícia é um lembrete de que a inovação tecnológica nem sempre caminha de mãos dadas com a saúde pública. Em Portugal, estima-se que cada habitante consuma em média 2,3 pacotes de pipocas de micro-ondas por ano e até 1,8 kg de snacks salgados, segundo dados de 2023 da Nielsen IQ Portugal. Embora a ingestão via oral seja pouco problemática, o alerta texano e os casos de “popcorn lung” obrigam-nos a refletir sobre a necessidade de regulamentações mais claras e de uma literacia alimentar aprimorada.
Empresas como a Nestlé Portugal e a Unilever têm investido em alternativas sem diacetil, testando emulsões naturais que reproduzam o sabor amanteigado sem recorrer ao composto sintético. Projetos de investigação no Instituto Superior Técnico (IST) e no Celta (Campus de Tecnologia Alimentar) da Universidade do Minho exploram o uso de leveduras e bactérias produtoras de diacetil de forma controlada, visando reduzir a exposição dos trabalhadores e do público.
A propósito, o Observatório Português de Segurança Alimentar (OPSA) lançou em 2024 a campanha "Sabores Visíveis", que incentiva consumidores a reportar produtos com aromas não identificados. Até novembro do mesmo ano, a OPSA recebeu mais de 1.200 reclamações, das quais 38% mencionavam “aroma de manteiga” sem clareza na rotulagem.
Ler rótulos já não é suficiente; é preciso exigir transparência e responsabilidade das marcas. O diacetil pode continuar a dar aquele toque gourmet aos nossos petiscos, mas não podemos virar as costas ao potencial de riscos respiratórios — mesmo que apenas para quem trabalha na linha de produção.
Nesta série "Perigo Invisível no Prato", vamos informá-lo sobre os riscos que corre ao consumir alimentos com estas substâncias. Segue abaixo uma lista com os 40 ingredientes alimentares que estão na mira do Projeto de Lei 25 (SB 25) do Texas:
À medida que desvendamos o complexo mundo dos aditivos alimentares, ingrediente a ingrediente, a teia da indústria alimentar começa a revelar os seus segredos. Cada substância analisada não é apenas um nome num rótulo, mas sim um capítulo na história da nossa alimentação, com um propósito específico, um percurso regulatório e, mais importante, potenciais implicações para a nossa saúde.